A democracia é tão resistente que aguenta até aqueles que, não a respeitando, lhe fazem ataques frequentes. Os que conspiram contra a democracia, direta ou indiretamente, são livres para fazê-lo. Não são mortos; no máximo, podem responder a um processo e, depois, voltam à cena. Num sistema totalitário, como o nazista e o comunista, as críticas não são bem-vindas. Pelo contrário, aqueles que as fazem são presos e, muitas vezes, assassinados. O soviético Ióssif Stálin e o austríaco-germânico Adolf Hitler não perdoavam seus adversários, que eram tratados como inimigos. A China, país totalitário presidido por Xi Jinping, continua encarcerando e executando críticos do regime.
A esquerda e a direita irmanaram-se, mesmo não sendo aliadas — porém, por curto espaço de tempo, entre 1939 e 1941, a União Soviética comunista de Stálin e a Alemanha nazista de Hitler se tornaram parças —, na questão do totalitarismo. O comunismo e o nazismo foram o grande desastre — um experimento político — do século 20. Ressaltando que, se o nazismo saiu derrotado da Segunda Guerra Mundial, o comunismo persiste na China e em Cuba. No país de Xi Jinping há, por assim dizer, uma espécie de comunismo de Estado. O governo (a política) está sob controle total do Estado e a economia é regulada mas é, de alguma maneira, capitalista.
Neste momento, discute-se a eleição presidencial dos Estados Unidos. A democrata Kamala Harris e o republicano Donald Trump vão pelear, daqui a alguns meses, pelo direito de governar o país mais rico do mundo.
As pesquisas de intenção de voto sinalizam, no momento, para um empate técnico. Kamala Harris e Trump têm chance de ganhar o pleito. Qual é melhor para a democracia e para o Brasil?
Curiosamente, Trump inverteu a lógica político-econômica dos Estados Unidos. Os republicanos são considerados menos protecionistas do que os democratas. Porém, ao contrário de outros republicanos, Trump, um outsider no partido, é protecionista — bem mais do que Joe Biden, do partido Democrata.
Na disputa deste ano, dois protecionistas (da economia americana) estão disputando a Presidência. Noutras palavras, países como a China, o México e o Brasil, para citar apenas três, podem ter problemas (por exemplo, com a exportação de aço) com o democrata ou com o republicano. Com a ressalva de que Trump tem se mostrado mais protecionista — a favor de uma taxação mais alta das importações — do que, por exemplo, Joe Biden (que, por sinal, faz um governo eficiente e estável).
Há alguém de esquerda nos partidos Republicano e Democrata? É possível, no segundo, mas não na proa. Kamala Harris é, como Trump, liberal. Só que ele é conservador e ela mais próxima da socialdemocracia. Ao contrário do que se parece pensar no Brasil, a integrante do partido Democrata não é de esquerda. Porém é mais avançada, sobretudo em questões sociais e comportamentais, do que seu aliado Joe Biden. Em termos comportamentais e sociais, Trump é um recuo, uma volta ao passado (e não ao passado de Franklin Roosevelt, e sim, piorado, ao de Richard Nixon).
Lula, Bolsonaro e o golpismo da direita
Em termos estritamente políticos, a democracia brasileira ganha mais com uma vitória de Kamala Harris. Porque Trump mantém ligação estreita com políticos da direita patropi — ou extrema-direita — que são golpistas, quer dizer, usam a democracia, mas conspiram contra os poderes que a sustentam, como o Judiciário (o Supremo Tribunal Federal) e o Executivo.
O problema não é a direita civilizada, como a de Ronaldo Caiado, Ratinho Júnior, Romeu Zema e, mesmo, a do bolsonarista Tarcísio de Freitas. O problema é a extrema-direita, que, quando perde viabilidade eleitoral, articula o golpismo para retirar do poder aquele que foi eleito. Independentemente de como se articulou o 8 de janeiro, a “minuta do golpe” prova que o bolsonarismo ousou atentar contra a democracia. Ou seja, planejou retirar Lula da Silva do poder. Quem nega isto não conseguirá entender que o bolsonarismo se tornou uma espécie de sistema golpista. Uma espécie de UDN sem estofo.
Como não é sofisticado — na verdade, é tosco —, o bolsonarismo parece um fenômeno irracional. Mas não é. Trata-se, por assim dizer, de um movimento articulado e com projeto de poder concatenado.
As eleições para prefeito e vereador acontecerão daqui a dois meses e oito dias. O bolsonarismo está se movimentando em todo o país, notadamente nas capitais e nas grandes cidades, com o objetivo de criar bases eleitorais que possam contribuir para eleger, em 2026, mais deputados federais e senadores.
Por que, se interessa mais ao bolsonarismo a Presidência da República, Bolsonaro e seus aliados estão operando em nível legislativo?
O bolsonarismo parece avaliar que, se não conquistar a Presidência, pode enfraquecer aquele que estiver no poder por meio do controle do Legislativo. Noutras palavras, o objetivo é engessar o presidente que não for aliado.
Então, as andanças de Bolsonaro pelo país — capitais e grandes cidades — têm como objetivo ampliar sua base político-eleitoral para tentar eleger o próximo presidente da República. Porém, se não conseguir eleger o mandatário-chefe, ao menos, com uma base legislativa articulada e coesa, pode travar, ou tentar travar, o governo daquele que foi eleito. Hoje, na Câmara dos Deputados e no Senado, o bolsonarismo já opera para engessar o governo de Lula da Silva e para ampliar a adoção, pelo país, de uma pauta conservadora.
A casa que cria leis é o Congresso Nacional. O Judiciário — do qual o Supremo Tribunal Federal é a instância superior, como diz seu nome — aplica leis criadas não por magistrados, e sim por deputados federais e senadores.
Então, com uma base ampla no Congresso, o bolsonarismo pode “governar”, ainda que indiretamente, o país. O Supremo Tribunal Federal, mesmo com ministros progressistas — e de olho na realidade diária das pessoas, e não em pautas conservadoras de grupos religiosos e partidários —, pode ser engessado por leis draconianas, mas legalmente aprovadas. Há como contorná-las? Só em parte. Porque, se o STF não aplicar as leis criadas, boas ou ruins, estará articulando contra a democracia. Ainda que seja uma democracia forjada por forças conservadoras e não necessariamente democráticas.
Ao votar, daqui a dois meses, os eleitores estarão escolhendo prefeitos e vereadores. Ou seja, aqueles que vão governar e legislar, por quatro anos, os municípios. Mas não só. Esta é a face visível — a árvore — mas não todo o corpo, ou seja, a floresta.
No dia 6 de outubro, num domingo, os eleitores brasileiros estarão escolhendo aqueles — prefeitos e vereadores — que formarão os exércitos eleitorais que vão operar, em todas as cidades do país, as bases das campanhas dos candidatos a presidente da República, governador, senador e deputados estaduais e federais, em 2026.
Então, a disputa de 2024 joga mais do que a eleição de 2024. Num ambiente conturbado, com a direita — além da extrema-direita — e a esquerda fortes, com escasso espaço para a moderação do centro político, é preciso entender que, ao votar, os eleitores estarão escolhendo mais do que prefeitos e vereadores.
O Editorial está fazendo a defesa da esquerda contra a direita? Não. Porque, como se disse, o problema não é a direita em si — a civilizada e moderna de Ronaldo Caiado, Romeu Zema, Ratinho Júnior e Tarcísio de Freitas (que, no futuro, certamente romperá com o bolsonarismo, se este enfraquecer) —, e sim a extrema-direita golpista que segue Jair Bolsonaro.
Sendo tão forte quanto vital, a democracia está preparada para acolher tanto um presidente de direita quanto um de esquerda. A questão chave, portanto, não é se o próximo presidente será de esquerda ou direita, e sim, se o eleito vai se pautar pela manutenção da democracia.
Lula a Silva (PT), Ronaldo Caiado (União Brasil), Ratinho Júnior (PSD), Romeu Júnior (Novo) e Tarcísio de Freitas (Republicanos) são democráticos (com a ressalva de que o governador de São Paulo ainda é uma incógnita, por ser bolsonarista); portanto, se qualquer um deles for eleito, a democracia não sairá arranhada. O problema é a direita — ou extrema-direita — que segue Bolsonaro e que, quando perde, opera contra a democracia.