O programa Dancing with the Stars (a "Dança dos Famosos" dos EUA) é conhecido por seu brilho e glamour, sendo uma referência na televisão americana há quase 20 anos. Mas na terça-feira (17/9), tomou um rumo inesperado durante a estreia de sua nova temporada.
Em um comunicado à imprensa, a rede ABC, de propriedade da Disney, descreveu Sorokin como "uma artista, ícone da moda e infame socialite de Nova York", assim como "uma conhecida fashionista com tornozeleira".
E, assim, ela se juntou a um elenco que inclui um veterano da NBA, a liga de basquete americana, várias estrelas de reality shows e dois atletas olímpicos, na mais recente edição do programa, que é uma versão da atração britânica Strictily Come Dancing, da BBC.
Os críticos acusaram a rede ABC de glamourizar o passado criminoso da golpista. O jornal americano The New York Post chamou a participação dela de "novo fundo do poço para a cultura pop".
Alguns também questionaram como ela tem o direito de viver e trabalhar nos Estados Unidos, sendo uma cidadã russa-alemã.
Na verdade, a tornozeleira eletrônica que Sorokin usa não se deve a suas condenações de 2019, depois de ter viajado pelo mundo se passando por uma herdeira europeia, aplicando golpes de US$ 200 mil em bancos, advogados e uma empresa de jatinhos particulares.
Em vez disso, a tornozeleira eletrônica é resultado da sua luta contra a deportação, uma batalha judicial que já dura anos com a imigração nos EUA.
Este novo capítulo de infâmia gerou intensos debates online.
Alguns parecem admirar sua ambição sem fim, como se ela representasse uma espécie de representação distorcida do sonho americano. Outros criticam sua autopromoção contínua e a aparente falta de remorso.
Durante uma discussão acalorada no programa The View, a atriz Whoopi Goldberg disse que o fato de Sorokin poder participar do Dancing with the Stars, apesar de enfrentar acusações sobre sua situação migratória, é um exemplo de um "sistema de imigração dualista" que favorece os ricos ou bem relacionados.
Outros disseram que não é surpreendente ver suas condenações serem ignoradas num país em que um criminoso está concorrendo à presidência.
Sorokin ficou conhecida quando a revista New York Magazine publicou uma investigação sobre seus crimes em 2018. Seus golpes foram posteriormente explorados na série Inventando Anna, da Netflix, e no podcast Fake Heiress, da BBC.
Sua audácia intrigou as pessoas ao redor do mundo. Ela havia conseguido entrar nos círculos da alta sociedade da cidade de Nova York, em um estratagema que durou anos. Seu objetivo era obter um empréstimo de US$ 22 milhões para criar uma fundação de arte em seu próprio nome.
Enquanto fingia ser uma herdeira, ela falsificou extratos bancários, acumulou grandes contas em hotéis de luxo que não tinha como arcar, saiu correndo de restaurantes sem pagar, passou cheques sem fundo, criou e-mails falsos de contadores e deixou que outros pagassem suas contas depois de gastos extravagantes.
Muitas pequenas empresas e indivíduos também foram afetados.
"Ela é uma figura pública há tanto tempo que não acho que as pessoas se lembram dos detalhes de seus crimes — se é que alguma vez souberam", diz a jornalista Jessica Pressler, que escreveu o primeiro artigo sobre ela na revista New York Magazine, e virou inspiração para o personagem fictício da jornalista de Inventando Anna.
"As pessoas não olham muito além da superfície", ela acrescentou, reconhecendo que foi isso que contribuiu para a fraude original.
"Dancing With the Stars… é uma extensão natural da história."
Sorokin foi presa em 2017, enquanto fugia na Califórnia, e foi submetida a um julgamento criminal em Nova York. Em 2019, ela foi considerada culpada de oito acusações relacionadas a roubo — e condenada a de quatro a 12 anos de prisão.
Assim terminou a primeira parte de suas batalhas na Justiça.
Ela foi libertada em fevereiro de 2021, depois de cumprir quase quatro anos. As autoridades americanas esperavam que ela deixasse o país, mas ele não fez isso.
Seis semanas depois, após uma série de aparições na mídia e ter assinado um contrato pago de televisão com uma empresa alemã, as autoridades de imigração a prenderam por ter ultrapassado o prazo de validade do seu visto.
Mais de três anos depois, ela continua lutando contra a deportação.
Ela já cumpriu pena na prisão e em prisão domiciliar. Em 2022, estava previsto que ela embarcaria em um voo em Nova York para voltar à Alemanha. Mas seu advogado interveio, e ela não embarcou. O litígio sobre sua deportação continua em andamento, eles disseram.
Não se sabe com clareza o argumento exato da sua solicitação de asilo, mas acredita-se que esteja relacionado com a sua cidadania russa.
Ela morou na Rússia durante a infância, mas sua família se mudou para a Alemanha quando ela era adolescente. Mais tarde, quando ela foi para Nova York, ela tinha um visto de turista.
Enquanto estava em prisão domiciliar, Sorokin lançou seu próprio podcast, e deu entrevistas para vários veículos de imprensa. A revista americana Vogue filmou um tour pelo apartamento dela no East Village; enquanto a Vogue britânica publicou um artigo intitulado "O que Anna Delvey está lendo?".
"A maioria de nós morreria de vergonha se fizesse o que ela faz", diz Pressler, se referindo a como Sorokin ficou meses num hotel sem pagar a conta e viajou para o Marrocos sem dinheiro.
"Ninguém faria algo assim. Ela faz isso com desenvoltura. Acho que, no geral, a admiração que as pessoas têm por ela se limita a isso."
"(As pessoas) não vão fazer esse tipo de coisa, nem acreditam que as coisas que ela fez foram corretas, mas uma pessoa comum gostaria de ter essa confiança em si mesma."
John Sandweg — que atuou como chefe interino do Departamento de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE, na sigla em inglês) durante a presidência de Barack Obama — é atualmente o advogado de Sorokin no processo de imigração.
Ele disse à BBC que processos de deportação longos não são incomuns nos Estados Unidos, mas este tem sido "bastante demorado".
"O processo criminal dela também está em fase de recurso há muito tempo, e isso teve um impacto", explicou.
Ele disse que as condições da prisão domiciliar dela eram "realmente restritivas".
"Ela foi banida das redes sociais. Argumentamos que isso era inconstitucional", acrescentou. Segundo ele, ela não representava risco de fuga nem perigo para a sociedade, e havia cumprido as condições de sua liberdade condicional.
Como resultado do recurso, as condições da sua fiança foram relaxadas em agosto. Ela agora está de volta às redes sociais, e foi autorizada a viajar para Los Angeles para as filmagens de Dancing with the Stars. Ela também tem um número de previdência social.
O ICE confirmou à BBC que havia dado permissão para ela viajar.
"As condições de libertação de Anna Sorokin foram modificadas por um juiz de imigração do Departamento de Justiça", informou um porta-voz.
Sorokin teve que pagar aluguel enquanto estava em prisão domiciliar, mas isso também causou uma disputa judicial.
O proprietário do imóvel entrou com um processo, alegando que ela não havia pago três meses de aluguel. De acordo com os documentos judiciais, ele alegou que Sorokin devia mais de US$ 12 mil. O caso acabou sendo resolvido, e ela se mudou.
Sorokin contratou vários advogados nos últimos anos. Acredita-se que tenha sido capaz de financiá-los graças a contratos de mídia e à venda de obras de arte feitas na prisão.
A Netflix pagou controversamente a Sorokin US$ 320 mil para "comprar" sua história de vida e contar na série Inventando Anna.
Após uma intervenção estatal, a atriz foi obrigada legalmente a usar parte deste dinheiro para reembolsar as vítimas do seu roubo. Mas sobrou algum dinheiro para pagar o advogado dela durante o primeiro julgamento.
A Netflix está enfrentando um julgamento por difamação, desencadeado pela série.
O processo foi aberto pela ex-amiga de Sorokin, Rachel Williams, cuja história também foi contada na série.
Williams escreveu um livro, My Friend Anna ("Minha amiga Anna", em tradução livre), sobre sua amizade efêmera e como acabou depois que ela teve que pagar uma conta de US$ 62 mil em um resort de luxo no Marrocos.
O processo argumenta que a Netflix usou seu nome verdadeiro e detalhes biográficos na série Inventando Anna, mas ela foi injustamente retratada como uma "pessoa vil e desprezível".
A Netflix, em uma tentativa de arquivar o processo, disse que sua interpretação de Williams estava aberta à "licença literária" e protegida pela Primeira Emenda, segundo a revista Variety.
Sorokin não está envolvida nesse processo, embora tenha sido intimada como testemunha no julgamento.
O advogado de Williams, Alexander Rufus-Isaacs, disse à BBC que o caso deve ir a julgamento no ano que vem.
Ele afirmou que a participação de Sorokin no Dancing with the Stars "glamouriza e minimiza os crimes que ela cometeu, minimizando o impacto nas pessoas que ela lesou".
No tribunal, Sorokin foi considerada inocente da acusação relacionada à viagem ao Marrocos. A empresa American Express acabou reembolsando Williams, mas depois de ela ter sofrido um longo período de estresse e ansiedade, de acordo com seu livro.
Embora alguns vejam Sorokin como uma heroína antissistema por ter se infiltrado e constrangido instituições abastadas, Williams não enxerga as coisas desta forma.
Em uma entrevista anterior à BBC, ela disse: "O sistema que Anna estava tentando minar… ela não estava fazendo isso por causa de uma nobreza altruísta, ela queria fazer parte dele".
Em resposta à recente repercussão negativa causada pela participação de Sorokin no programa, o chefe do Dancing with the Stars, Conrad Green, afirmou à Variety:
"Sim, [Sorokin] teve os problemas que teve, mas já tivemos outras pessoas no programa que tiveram problemas criminais no passado. Ela cumpriu sua pena. Acho que é perfeitamente válido que ela esteja no programa."
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