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“Não morra sem viver.” Esta frase estava numa placa na entrada de um restaurante em Pirenópolis próximo à ponte famosa sobre o Rio das Almas. Ao lado dela, algo de deixar abundantemente feliz a quem é “aparelhado para gostar de passarinho”: uma paineira repleta de ninhos de xexéu, também conhecido como japim, japuíra, joão-conguinho. Algumas pessoas costumam chamar tal ave de guaxe, mas este é outra espécie. O primeiro nome científico de ambos é o mesmo — “cacicus” (cacique) —, mas o segundo é diferente: aquele “cela” e este “haemorrhous”. Pode-se dizer que são primos.
A frase pirenopolina, na verdade, foi sugada no sociólogo e psicanalista alemão Erich From (1900-1980), que fala do ‘amargor doloroso de morrer’, porém destacando que “a ideia de morrer sem ter vivido é insuportável”. From disse em outras palavras sobre mesma coisa dita pelo poeta, naturalista, filósofo e transcendentalista americano Henry David Thoreau em seu livro “Walden ou A vida nos Bosques”, lançado em 1849. No transcorrer do tempo, muitas ideias a cada momento vêm sendo ditas com palavras diferentes. Muitas roupas para um mesmo corpo. Isso, altaneiro leitor, se trata de tautologia.
A respectiva obra é fruto dos dois anos em que Thoreau viveu numa cabana construída por ele à beira do Lago Walden, em Concord. E isso com a permissão do dono da terra, Ralph Waldo Emerson, também intelectual de grande porte e 14 anos mais velho que aquele. Thoreau pôs em prática o que Waldo disse: “Para alcançarmos a solidão, qualquer homem necessita abandonar tanto as coisas mais imediatas como a sociedade”. O ato de ler e escrever, segundo ele, não o fazia se sentir só mesmo quando não havia alguém ao seu lado. Os dois se conheceram em Harvad.
Sobre a frase de Thoreau presente na de Piri, o poeta fala da necessidade de comunhão com a vida e isso de maneira bucólica: “Fui para os bosques viver de livre vontade, para sugar todo o tutano da vida e, para quando morrer, não descobrir que não vivi”. Sugar o tutano da vida não é uma tarefa fácil, pois exige autonomia de pensamento. Pensar com as próprias pernas é uma caminhada fora do trajeto habitual, em que a maioria vai sem que haja escolha. Por trás dessa marionetização coletiva de imbecilidade, estão alguns “homens que não merecem respeito maior que um espantalho ou monte de lama”. Thoreau fala desses homens em seu livro “Desobediência Civil”, no qual o leitor não encontra carícias poéticas como em “Walden”, mas bofetadas políticas doloridas, porém muito instrutivas.
Para Thoreau, “o governo, no melhor dos casos, nada mais é do que um artifício conveniente; mas a maioria dos governos é por vezes uma inconveniência, e todo o governo algum dia acaba por ser inconveniente.” Por pensar fora da cartilha da caverna, foi preso ao se recusar a pagar imposto. Sua recusa, segundo ele, era pelo fato de o governo americano usar o dinheiro na Guerra Mexicano-Americana, que foi de 1846 a 1848 e motivada pela ambição dos Estados Unidos em terras mexicanas, que acabaram sendo obtidas. A ambição do Tio Sam é desenfreada e há sempre sangue nos seus olhos.
Passou um dia em cana. Sua prisão aconteceu quando ele se dirigia ao sapateiro para buscar um par de botas que mandou consertar. Isso consta em “Desobediência Civil”. Após ser libertado, foi à sapataria, pegou os calçados, calçou-os e se ajuntou a um grupo de pessoas que o queria como guia numa busca de frutas silvestres nas matas que circundavam Concord, Massachusetts, cidade em que nasceu (12/5/1817) e morreu aos 44 anos de idade.
Em seu período de cárcere, Thoreau viu muita poesia escrita nas paredes da cadeia. “Essa é provavelmente a única casa na cidade onde se escrevem poesias que são publicadas em forma de circular, mas que não chegam a virar livros”, disse, relatando que era poesia de alguns jovens que se valiam de versos como forma de “vingar” a fuga frustrada da prisão. Estar na cadeia “foi como viajar a um país distante” que ele teria imaginado conhecer. Estar na cadeia “era como contemplar a minha aldeia natal à luz da Idade Média”.
Justificando seu descontentamento político, afirmou que agia “distintamente dos que se chamavam antigovernistas”. Externou que seu desejo imediato “era um governo melhor, e não o fim do governo”. Mesmo dizendo que não era antigovernista, conta algo que é atual: “toda a votação (para escolha de governo) é um tipo de jogo, tal como damas ou gamão, com uma leve coloração moral, onde se brinca com o certo e o errado sobre questões morais; e é claro que há apostas neste jogo”.
Para Thoreau, a maneira se formar um bom governo seria “se cada homem expressar o tipo de governo capaz de ganhar o seu respeito”. Ação que, segundo ele, ocorrerá apenas “quando os homens estiverem preparados” intelectualmente. Em sua opinião, “a massa de homens serve ao Estado não na sua qualidade de homens, mas sim como máquinas, entregando os seus corpos. (…) Na maior parte dos casos, não há qualquer livre exercício de escolha ou de avaliação moral; ao contrário, estes homens nivelam-se à madeira, à terra e às pedras”.
A desobediência civil de Thoreau é ação de inteligência e não da força de músculos e ações afins como já aconteceu e vem acontecendo. Mahatma Gandhi e Martin Luther King seguiram os rastros de Thoreau: enquanto aquele mobilizou a população indiana na busca de libertar o seu país da exploração inglesa; este liderou ações dos negros estadunidenses na luta contra a segregação racial (boçalidade antiga como as pirâmides), na luta por direitos civis por eles estarem sofrendo com condições de inferioridade a eles impostas pela sociedade branca americana. Ambos, no entanto, foram assassinados a tiros: Gandhi em 30 de janeiro de 1948 e Luter King em 4 de abril de 1968.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza