À medida que se aproxima o 8 de março, a mídia e as redes sociais explodem em imagens e textos que têm o Dia Internacional da Mulher como tema e se propõem a discutir, celebrar e lucrar com a efeméride a partir de todos os vieses que se possa imaginar. Comerciais, postagens, programas de TV e até caixas de e-mail passam a despejar conteúdos com títulos que podem ir de “desconto em livros de grandes autoras sobre gênero e feminismo” até “dicas para presentear suas mulheres especiais” e “corrida vai colorir de rosa o parque no próximo domingo”. A reação das homenageadas é igualmente diversa: se há as que se alegram com presentes e flores, outras manifestam um incômodo difuso, e algumas verbalizam certa ironia ou desdém. E, embora o dia 8 seja o ápice do movimento, o caleidoscópio de informações e ofertas se mantém girando praticamente até o último dia do mês.
O fato é que uma data criada com o objetivo de incentivar reflexões e reconhecer as conquistas das mulheres tem sido cooptada por grandes empresas para impulsionar seus negócios. Os críticos classificam como social washing as campanhas que combinam ações de marketing e propaganda com um discurso com forte apelo social, como o da luta pelos direitos das mulheres, apenas com o objetivo de atrair mais consumidores e seguidores, obter lucro e manter-se relevante no mercado.
O Jornal da Unesp conversou com estudiosas da luta pelos direitos das mulheres, buscando compreender quais os significados acionados pelo dia 8 de março hoje, e que contribuições ele efetivamente pode aportar na busca pela emancipação feminina.
Uma das mais célebres marcas mundiais a enfrentar acusações de social washing por conta do 8 de março é a rede de fast-food McDonalds. Em 2018, os famosos arcos dourados foram virados de cabeça para baixo nas redes sociais da companhia. O objetivo foi representar o “W” de “woman”, como forma de homenagear as mulheres. Na época, a campanha foi amplamente criticada por publicizar um suposto apoio que destoava das práticas da companhia. Segundo apontaram os críticos, os regimes de contratação da franquia, que em países como a Inglaterra incluem salários baixos e contratos sem número máximo de horas, seriam responsáveis por deixar funcionárias em situação de rua.
Outro ponto que tem gerado cada vez mais questionamentos é a opção das campanhas por reforçar valores tradicionalmente associados à feminilidade, o que favoreceria uma perspectiva limitada e reducionista. Não por acaso, um dos setores que mais investe em publicidade no mês de março é o de estética e maquiagem. Segundo uma pesquisa divulgada pela Tunad, empresa especializada em Big Data que oferece consultorias para anunciantes e veículos da mídia, em 2023 houve um aumento de mais de 120% na quantidade de propagandas televisionadas do setor de estética e maquiagem, em comparação ao ano anterior, saltando de 1.699 para 3.741 anúncios. O período também aquece o mercado de flores; em 2024 estima-se um aumento de 20% na procura de flores para o Dia Internacional da Mulher e, no ano inteiro, o mês de março representa 8% do faturamento do setor.
A crescente mercantilização suscita, em algumas pesquisadoras, a preocupação com o esvaziamento de uma data que foi concebida essencialmente para promover reflexão, e inserir as demandas dos grupos de mulheres no centro do debate global.
“Existe uma multiplicação de dias comemorativos, porque a sociedade coloca demandas que atualizam as ações e os programas internacionais”, diz Lidia Maria Vianna Possas, pesquisadora do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas e coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero (Lieg). “Entretanto, houve uma apropriação do Dia da Mulher pelo comércio, pelas empresas, e vemos uma proliferação de campanhas e de propagandas”.
“O sentido da data mudou bastante, assim como o modo como passou a ser encarada”, diz Elisângela de Jesus Santos, professora no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), onde integra o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi). “O 8 de março é visto como um dia em que as mulheres devem ser bem tratadas, receberem flores ou serem presenteadas com discursos e objetos que as vinculam mais às suas características sensíveis e não combativas”, diz. “Mas devemos ser reconhecidas pelo que somos, e bem tratadas, todos os dias. Essa perspectiva romantizada da data acaba inviabilizando o entendimento do momento histórico que ela representa, enquanto marco das exigências históricas de mulheres do ponto de vista dos direitos humanos e dos direitos civis”, afirma a docente, que também é pesquisadora credenciada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp, câmpus Araraquara, e associada ao Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão (Nupe).
Na origem, a luta das mulheres trabalhadoras
Em 1975, a Organização das Nações Unidas (ONU) comemorou, pela primeira vez, o Dia Internacional da Mulher, e a data viria a ser oficializada pelo mesmo órgão dois anos depois. Entretanto, os movimentos de mulheres que culminaram no estabelecimento desse marco tiveram início muito antes. “A luta das mulheres não emerge apenas em 1975. Já havia desde o final do século 19 um pensamento e um protagonismo muito forte das mulheres, principalmente mulheres trabalhadoras”, diz Lidia.
O final do século 19 e o começo do século 20 foram marcados pela industrialização das principais economias do mundo e por um boom populacional em paralelo. Mulheres atuavam como operárias e estavam expostas à realidade insalubre do trabalho na indústria: longas jornadas, salários baixíssimos e nenhum direito garantido. E com agravantes: além de receberem os menores salários dentre os empregados, enfrentavam a jornada dupla, de trabalho assalariado e trabalho doméstico, ainda hoje presente em nossa sociedade.
Em 1908, Nova York foi palco de uma marcha que reuniu 15 mil mulheres demandando jornadas de trabalho mais curtas, aumento salarial e direito de voto. “Esse evento fez parte da primeira fase do feminismo, conhecida como primeira onda. Foi o caso das sufragistas que, em busca de uma suposta igualdade, reivindicavam o direito ao voto”, diz Lidia. Nos Estados Unidos, essa demanda só se materializaria como um direito dez anos depois, em 1919.
O movimento feminista, entretanto, passou a ganhar força com grupos de mulheres dentro do movimento socialista mundial. Em 1910, durante a Conferência Internacional das Mulheres Trabalhadoras, evento que fez parte do encontro da Segunda Internacional Socialista, a feminista e jornalista alemã Clara Zetkin defendeu a criação do Dia das Mulheres Trabalhadoras, com o objetivo de reafirmar anualmente, em todos os países do mundo, as demandas das mulheres. A pauta foi aprovada. A partir de então, em alguns países europeus a efeméride passou a ser comemorada no dia 19 de março, em homenagem à Comuna de Paris.
Nos anos seguintes, com a iminência da eclosão da Primeira Guerra Mundial, o Dia das Mulheres Trabalhadoras também se tornou ferramenta política para protestar contra a guerra – e, posteriormente, para pedir a paz. Entre as marchas realizadas naquele período, a mais marcante ocorreu no 8 de março de 1917. Naquele dia, mulheres marcharam por São Petersburgo, então capital russa, sob o lema “Pão e Paz”, em protesto contra a morte de mais de 2 milhões de soldados russos durante os conflitos da Primeira Guerra Mundial. O movimento marcou o estopim da primeira fase da Revolução Russa, forçando o Czar a abdicar e garantindo o direito de voto às mulheres russas.
A manifestação por “Pão e Paz” durou quatro dias e marcou a data e, em 1975, as Nações Unidas estipularam o 8 de março como Dia Internacional da Mulher. Segundo o órgão este “é um dia em que as mulheres são reconhecidas por suas realizações, independente de divisões, sejam elas nacionais, étnicas, linguísticas, culturais, econômicas ou políticas”.
Mulheres negras estão mais atreladas ao trabalho doméstico
Elisângela de Jesus Santos pondera que a história associada ao 8 de março está ligada principalmente aos movimentos protagonizados por mulheres brancas. Ela diz que mulheres negras já travavam lutas por pautas semelhantes antes mesmo do século 20. “A luta das mulheres negras não se dá em meio à constituição do trabalho livre e assalariado, mas àquele trabalho vivenciado durante os processos de escravização ou em torno de formas análogas a ele”, diz.
Ela pensa que o Dia Internacional da Mulher não deve ser observado a partir de uma perspectiva massiva; é necessário ter em mente que suas origens não são representativas da mobilização de todos os segmentos de mulheres, e sim de um recorte específico. Tal percepção não deveria diminuir a importância das conquistas alcançadas dentro dos movimentos das mulheres socialistas, mas também apontar para o fato de que elementos como raça, classe, faixa etária e sexualidade impactam de maneira distinta na forma como as mulheres se inserem em um contexto político determinado.
“Mulheres negras imersas e atuantes em contextos sociais marcados pelos processos de escravização terão outros sentidos de mobilização. Elas estão historicamente, quase sempre ligadas à esfera do trabalho e são, inclusive, menos valorizadas no mercado de trabalho”, diz. Dentro da esfera do trabalho, aquele ao qual elas estão mais atreladas é o trabalho doméstico. Mesmo hoje, muitas mulheres negras encaram uma jornada dupla do trabalho doméstico: enquanto donas de casa, cuidando de suas famílias e da sua casa; e enquanto empregadas domésticas. Segundo dados da Secretaria Nacional de Cuidados e Família, em 2022 5,8 milhões de pessoas no Brasil trabalhavam como empregadas domésticas, sendo 92% mulheres e 61,5% mulheres negras.
“A realidade de uma mulher negra é muito diferente da realidade de uma mulher branca. Na hora de pensarmos em políticas, essas diferenças, que afetam todas as mulheres de maneira distinta, dependendo do recorte social em que elas estão inseridas, devem ser consideradas”, diz Ana. “Temos de incluir todas no debate político, mas entender que as condições e oportunidades não são todas iguais”, diz.
O 8 de março segue relevante
Rememorar e recontar a história é uma estratégia essencial para manter a luta por direitos viva. O processo reflexivo permite reconhecer e valorizar o que já foi alcançado e dá ânimo para lutar pelo que ainda precisa ser conquistado, diz Ana Maria Klen, docente do Departamento de Educação da Unesp. “A conquista de um direito não significa que ele será eterno. Os últimos anos nos mostraram que os direitos podem ser retirados e cerceados. A luta por direitos é uma luta de conquista, de manutenção e de promoção”, diz.
“Nós precisamos rememorar a história, senão a opressão e a supressão de direitos podem voltar. É uma luta constante”, diz a pesquisadora, que também é presidente do Grupo de Trabalho Unesp Mulheres.
Apesar de a mercantilização da data levantar questionamentos sobre seu valor enquanto marco reflexivo, as pesquisadoras defendem que ela ainda cumpre um papel político importante. Especialmente no atual período em que se está discutindo, reconhecendo e passando a valorizar a existência de mulheres com experiências, contextos e histórias distintas. “Hoje, não falamos mais sobre ‘igualdade’, porque percebemos, pelos movimentos feministas do final do século 20 e começo do século 21, que as mulheres são muito distintas. Tanto que não se fala mais em um feminismo e, sim, em feminismos”, observa Lidia.
“Igualdade” é um conceito que defende que todos devem ser regidos pelas mesmas regras, ter os mesmos direitos e deveres. Ainda que, em uma primeira leitura, esse pareça ser o cenário ideal, esse conceito não reconhece o fato de que pessoas partem de contextos e oportunidades diferentes. Assim, as pesquisadoras defendem a utilização de “equidade”, que parte do princípio de reconhecer que os indivíduos não são iguais. Isso abre espaço para que políticas e ações afirmativas possam identificar e reconhecer essas diferenças, a fim de ajustar o desequilíbrio existente.
Enquanto as mulheres do século 19 e do século 20 marchavam por direitos básicos e iguais, em um contexto onde nada disso era garantido, hoje, as lutas tomaram novas formas para jogar luz e ouvir as vozes de diferentes mulheres. “O que os movimentos de mulheres colocam como pauta é o respeito pela equidade, ou seja, pelo lugar de cada grupo de mulheres pelas suas demandas”, diz Lidia.
“Quando falamos de direitos, e especialmente quando falamos disso no Dia Internacional da Mulher, é preciso assegurar que todas as mulheres estejam incluídas: mulheres cis, trans, ribeirinhas, quilombolas, rurais, urbanas, brancas, negras… Mas isso não significa que todas tenham os mesmos direitos e oportunidades”, diz Ana. O desafio é, ao mesmo tempo, incluir a todas e reconhecer as particularidades e demandas de grupos específicos. “A data permanece bastante relevante porque nesse dia conseguimos pautar e apresentar as dimensões do problema e, mais do que isso, levantar o debate público”, diz ela.
“Ainda que haja certa romantização e apetites econômicos e ideológicos em torno do 8 de março, ele deve ser lembrado e celebrado como data marco do protagonismo político de mulheres no século 20 que travavam todos os dias diversas lutas frente às desigualdades impostas a elas”, diz Elisângela
Lidia diz que, apesar de estar inserido em um contexto mercadológico, o Dia Internacional da Mulher segue proporcionando a oportunidade de reconhecer e discutir o fato de que ainda existem muitas mulheres em situação de subalternidade, “Sou a favor de comemorar essa data de forma reflexiva e, principalmente, atuante. Porque comemorar é não esquecer que as mulheres existem”, diz.