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Uma moeda BRICS?

Publicada em 19/08/23 às 16:30h - 19 visualizações

Rádio RIR Brasil Goiânia - Direção: Ronaldo Castro - e Marcio Fernandes 62 99951- 6976


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Uma moeda BRICS?
 (Foto: Rádio RIR Brasil Goiânia - Direção: Ronaldo Castro - e Marcio Fernandes 62 99951- 6976)

Por Paulo Nogueira Batista Jr.*

A possível criação de uma moeda pelos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) tem figurado com frequência na mídia internacional e nas declarações de alguns governantes de países do grupo, notadamente Putin e Lula.

Por iniciativa da Rússia, a ideia está em discussão desde 2022, de modo ainda embrionário.

O tema não foi lançado oficialmente, mas deve estar presente, de alguma forma, na cúpula dos líderes dos BRICS que ocorrerá na África do Sul de 22 a 24 de agosto.

O pano de fundo dessa possível moeda dos BRICS é, como se sabe, a crescente disfuncionalidade do sistema monetário internacional que, desde a Segunda Guerra Mundial, gira em torno de uma moeda hegemônica – o dólar dos Estados Unidos.

A contradição fundamental é o sistema internacional depender preponderantemente de uma moeda nacional, administrada de acordo com os interesses do Estado que a criou.

O dólar cumpre funções internacionais, como moeda de troca, moeda de denominação de contratos e preços, reserva de valor e meio de pagamento.

Trata-se, entretanto, de uma moeda nacional, gerida por um banco central nacional.

Nada garante que as prioridades do EUA coincidam com o interesse mais amplo do sistema internacional que depende da moeda americana.

Esse problema sempre existiu e foi objeto de críticas severas, inclusive de países aliados aos EUA.

Na década de 1960, Charles de Gaulle e seu ministro de Finanças, Valéry Giscard d’Estaing, denunciavam o “privilégio exorbitante” do dólar e propunham, com grande repercussão, mas sem sucesso, a volta a um sistema baseado no ouro.

Os EUA sempre resistiram tenazmente a qualquer tentativa de reduzir o papel internacional da sua moeda.

Nunca permitiram, para lembrar apenas um exemplo, que o direito especial de saque (DES), a moeda criada no âmbito do Fundo Monetário Internacional em 1969 (em reunião que teve lugar, diga-se da passagem, no Rio de Janeiro), crescesse e se consolidasse como moeda plena.

Sempre recorreram a seu direito de veto na instituição para impedir que o DES ameaçasse, mesmo remotamente, o dólar como moeda hegemônica.

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Ao longo dos anos em que estive na diretoria do FMI, de 2007 a 2015, as tentativas que fizemos de dar algum realce ao DES esbarraram na resistência dos EUA. E pouco conseguimos fazer.

Menciono aqui a moeda do FMI porque, como argumentarei, ela pode dar algumas pistas para a construção de uma eventual moeda dos BRICS.

O MAIOR INIMIGO DO DÓLAR

Os problemas do sistema monetário internacional são arquiconhecidos.

A novidade nos anos recentes é que os EUA vêm se valendo da sua moeda, de forma cada vez mais agressiva, para buscar objetivos políticos e geopolíticos.

Deu-se a militarização do dólar, isto é, o uso da moeda nacional/internacional e do sistema financeiro ocidental para atingir países hostis ou vistos como tal.

Venezuela, Irã, Afeganistão e, em grande escala, a Rússia foram alvos de sanções e medidas punitivas que só puderam ser aplicadas porque o dólar e o sistema financeiro dos EUA ocupam a posição que ocupam no mundo.

O caso da Rússia não tem precedentes.

Após a invasão da Ucrânia, os EUA e seus aliados europeus decretaram o congelamento das reservas russas aplicadas em dólares e euros, o que atingiu cerca de US$ 300 bilhões, mais ou menos metade dos ativos internacionais líquidos da Rússia!

Evidentemente, o uso e o abuso da posição privilegiada do dólar levam a uma perda de legitimidade do sistema monetário internacional vigente.

Provocou-se uma erosão da confiança no dólar – e confiança é um requisito indispensável para qualquer moeda.

Em uma frase: os Estados Unidos são hoje o principal inimigo do dólar como moeda mundial.

Criou-se, assim, um ambiente propício a discussões sobre a reforma do sistema monetário e a desdolarização das transações internacionais.

Foi nesse contexto que começou a reflexão nos BRICS sobre a conveniência de caminhar na direção de uma associação monetária e eventualmente de uma moeda comum.

POSSÍVEIS CAMINHOS PARA UMA MOEDA BRICS

Que caminhos poderiam ser trilhados?

A questão é complexa, ao mesmo tempo econômico-financeira e política.

O terreno é novo, ainda inexplorado. Procurarei abordar aqui alguns aspectos apenas, sem a pretensão de esgotar o assunto ou sequer de formular as suas linhas gerais de forma abrangente, até porque é cedo para apresentar propostas específicas, que demandariam consideração cuidadosa.

Uma curiosidade: os russos toparam com a seguinte coincidência feliz – as moedas dos cinco países dos BRICS começam todas com a letra “R” – real, rublo, rupia, renminbi e rand. Propuseram então que a nova moeda se denominasse R5.

O R5 começaria como unidade de conta, tomando a forma de uma cesta das cinco moedas, construída de maneira análoga ao DES.

Os pesos das cinco moedas refletiriam grosso modo o peso relativo das cinco economias.

O renminbi teria maior ponderação na cesta, seguido pela rupia, depois pelo real e o rublo, com o rand ficando com um peso menor.

A moeda chinesa poderia, para dar um exemplo ilustrativo, ficar com 40% da cesta; a moeda indiana, com 25%; as moedas russa e brasileira, com 15% cada; e a sul-africana, com 5%.

O R5 poderia começar em paridade unitária com o DES e flutuar a partir daí, refletindo as variações da sua cesta de moedas em relação à cesta do DES.

Nesse primeiro estágio, o R5 poderia ser usado como unidade de denominação para certas transações e registros contábeis oficiais, além de ser adotado em substituição ao dólar na contabilidade dos mecanismos financeiros criados pelos BRICS – o Novo Banco de Desenvolvimento e o Arranjo Contingente de Reservas.

Essa etapa é relativamente simples e, havendo consenso entre os cinco países, poderia ser implementada de forma rápida e sem custos significativos.

A proposta russa, até onde sei, não vai muito além desse passo inicial. A partir daí, fala-se vagamente em criar, numa etapa posterior, uma moeda “lastreada” em ouro.

Como se sabe, uma moeda propriamente dita tem que exercer não apenas as funções de unidade de conta e de denominação de preços e contratos, como também as de reserva de valor e meio de pagamento.

Como assegurar que o R5 possa cumprir todas essas funções?

E quem se responsabilizaria por emitir o R5 e colocá-lo em circulação?

O R5 teria existência física ou seria apenas digital?

Seria necessário criar um Banco Central dos BRICS e unificar a política monetária?

Para que uma moeda possa desempenhar todas as funções monetárias a contento, é fundamental que ela inspire confiança e seja, assim, aceita de forma ampla.

Para que ela possa despertar confiança e tenha credibilidade, é preciso que a sua emissão seja regulada de forma sólida. E é preciso que ela seja colocada em circulação de maneira ordenada.

Todas essas questões demandariam, volto a dizer, uma reflexão e um planejamento que ainda não começaram.

Ofereço, a título de contribuição para o debate, algumas observações preliminares.

Primeiro, não é necessário que o R5 tenha existência física. Poderia ser apenas digital.

Também não seria necessário, nem recomendável criar um Banco Central dos BRICS, responsável pela condução da política monetária para os cinco países – algo impraticável por vários motivos.

Em outras palavras, não se trata de criar uma moeda única que substituiria as cinco moedas nacionais.

Bastaria criar um banco emissor, encarregado de emitir R5 de acordo com regras pré-determinadas, numa espécie de piloto automático, sem interferir na atuação dos bancos centrais que continuariam a desempenhar todas as funções típicas de autoridade monetária, isto é, a definição da taxa de juro, as operações cambiais e de mercado aberto, a gestão das reservas internacionais, além das tarefas de regulação e supervisão financeira.

O R5 seria apenas uma moeda virtual para transações internacionais, inicialmente entre bancos centrais.

Poderia, por exemplo, servir de reserva de valor para permitir que países superavitários dos BRICS mantenham saldos acumulados nas transações realizadas entre eles.

À medida que fosse sendo aceita, funcionaria mais amplamente como reserva de valor e meio de aplicação das reservas internacionais.

Nesse sentido, o R5 se aproximaria da proposta de criação do Bancor, formulada por Keynes no início dos anos 1940, em tentativa frustrada de impedir a dominação do dólar no sistema monetário internacional do pós-guerra.

O LASTRO DA NOVA MOEDA

Como assegurar a ampla aceitação do R5?

Os russos mencionaram, como indiquei, a alternativa de um lastro em ouro. Não funcionaria, a meu ver.

Pode parecer uma opção atraente à primeira vista, mas é, na realidade, uma ideia regressiva – um retorno ao que Keynes chamava de “relíquia bárbara”.

Lastro, no sentido monetário, é um ativo sólido, confiável e relativamente estável, que constitui a base com a qual uma moeda alcança ampla aceitação e circulação.

Para que esse lastro tenha sentido real é necessário, a rigor, que a moeda lastreada seja livremente conversível no ativo-lastro a uma taxa de câmbio fixa.

Ao longo do século 20, o ouro já desempenhava com dificuldade crescente essa função de lastro.

Isso foi ficando cada vez mais evidente com o passar do tempo, tanto que o seu papel foi progressivamente reduzido até ser abandonado por completa pela suspensão da conversibilidade do dólar em ouro, decretada unilateralmente pelos EUA em 1971.

Hoje, a opção lastro-ouro seria ainda menos defensável, para não dizer inviável.

Adotado esse caminho, os BRICS seriam obrigados a reter um montante elevado de reservas em ouro, tanto maior quanto maior fosse a emissão de R5.

O preço do ouro flutua acentuadamente, o que provocaria variações imprevisíveis no valor das reservas internacionais dos BRICS.

O R5 flutuaria ao sabor das inúmeras circunstâncias que afetam o mercado mundial de ouro e que pouca relação guardam com o movimento da economia real dos BRICS e do resto do mundo.

O R5 flutuaria junto com o ouro e perderia qualquer condição de servir como referência.

Não por acaso, o ouro não tem qualquer função na moeda do FMI.

O DES está lastreado não em ouro ou outros metais preciosos, mas em dólares e nas outras principais moedas. Ou seja, o detentor de DES tem o direito de convertê-los, livremente e a qualquer momento, em dólares e outras moedas de liquidez internacional.

O FMI assegura essa conversibilidade e conta para isso com suas reservas e, se necessário, com o compromisso dos países emissores de moedas de liquidez internacional de comparecer com fundos adicionais.

A confiança no DES é alta e os países não hesitam em manter a moeda do FMI como parte integrante das suas reservas oficiais.

Essa modelo de conversibilidade não seria, claro, uma solução para o R5.

Teoricamente, nada impediria de lastreá-lo em moedas de liquidez internacional e, com base nas elevadas reservas internacionais dos BRICS, assegurar a sua conversão em dólares, euros ou ienes.

Mas, claro, isso would defeat the whole purpose of the exercise (derrotaria toda a finalidade da iniciativa) – uma moeda criada como alternativa ao dólar teria a sua aceitação assegurada pela livre conversibilidade em… dólares, euro, ienes.

Como fazer então? Como assegurar a confiança e a ampla aceitação no R5?

Uma possibilidade seria tornar o R5 conversível em títulos garantidos pelos cinco países. O Banco Emissor de R5 ficaria encarregado também de emitir R5 bonds, títulos R5, com diferentes prazos e taxas de juros.

O R5 seria livremente conversível em títulos R5. “Lastreada” em ativos criados pelo próprio Banco Emissor, o R5 seria, na verdade, uma moeda fiduciária, da mesma natureza que o dólar e as demais moedas de liquidez internacional.

Os títulos R5 seriam a expressão financeira concreta da garantia que os cinco países dariam à nova moeda.

A ENTRADA EM CIRCULAÇÃO DO R5

A entrada em circulação da nova moeda ocorreria pela ação dos cinco Estados nacionais.

A circulação poderia começar entre os bancos centrais e se estender gradualmente a outras operações governamentais e transações com bancos centrais extra-BRICS.

O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), a principal iniciativa concreta do grupo até agora, poderia desempenhar um papel, como destacou Putin em encontro recente com a atual presidente do banco, Dilma Rousseff.

O NBD poderia contribuir de três formas pelo menos para o processo de desdolarização da economia mundial.

Primeiro, e mais óbvio, acelerar a desdolarização das suas operações ativas e passivas, emitindo títulos e realizando empréstimos nas moedas nacionais dos países membros do banco.

Segundo, por meio do seu departamento de pesquisa, apoiar estudos e conferências sobre a reforma do sistema internacional e a eventual criação do R5.

Terceiro, numa etapa mais avançada, ajudar a colocar a nova moeda em circulação, realizando empréstimos e captações em R5.

A CÚPULA DE 2023 E AS SEGUINTES

Para fazer avançar essa discussão complexa, seria interessante que os líderes dos BRICS, na cúpula que ocorrerá daqui a algumas semanas, pedissem a seus ministros de Finanças e a seus institutos de pesquisas que estudem de modo coordenado a questão e apresentem os resultados desse trabalho na cúpula que se realizará em 2024, na Rússia.

Poderiam, também, recomendar que se constitua um grupo de especialistas para avaliar a conveniência e factibilidade de criar uma moeda BRICS.

Não sei se a discussão avançou suficientemente e se há consenso entre os países para tratar de examinar o tema. Logo saberemos.

Idealmente, os líderes dos BRICS dariam agora um primeiro sinal, de ordem geral, para lançar um processo de avaliação.

Se tudo correr bem, na cúpula seguinte, em 2024, os BRICS tomariam a decisão de começar a discutir formalmente a viabilidade de uma nova moeda. A decisão de criar o R5 poderia ser tomada na cúpula de 2025, sob a presidência brasileira.

Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015.

Artigo publicado originalmente no dite Viomundo




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