A burocracia alemã não costuma conhecer a compaixão, e as goianas presas por mais de um mês no país não são as únicas vítimas desse sistema.
Nina Lemos, da Coluna ‘O estado das coisas‘ no DW
A burocracia alemã não costuma conhecer a compaixão, e as goianas presas por mais de um mês no país não são as únicas vítimas desse sistema.
Duas mulheres planejam uma viagem de férias para a Europa e acabam presas em uma penitenciária alemã depois que as etiquetas de suas malas são trocadas. A história das goianas Kátyna Baía e Jeanne Paolini se parece com a sinopse de um filme de terror claustrofóbico. Mas, para desespero delas, de suas famílias e de todos nós que nos preocupamos com as duas (e também tememos que o mesmo aconteça com a gente), é vida real. Elas só foram libertadas depois de mais de um mês , nesta terça-feira (11/04).
O terror vivido pelo casal de Goiânia teve um elemento que tornou tudo mais angustiante e difícil de ser solucionado: a burocracia alemã.
Explico: em entrevista à DW na semana passada, a advogada do caso, Luna Provazio de Almeida, disse que Justiça Alemã já havia recebido no dia 5 de abril (quando houve uma audiência do caso) parte das provas enviadas pela Polícia Federal brasileira e acreditava que como dois eram inocentes, mas condicionou a soltura das brasileiras à análise INTEGRAL dos documentos. E mais: eles exigemam que esse material fosse enviado pelo Ministério da Justiça do Brasil e do Itamaraty. Se não, não vale. Segundo o Secretário Nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho, as provas foram enviadas no dia 6 de abril.
Essa “enrolação burocrática” é revoltante, mas não surpreende a mim e a ninguém que mais na Alemanha. Isso porque essa história de falar “esse documento não vale, precisamos de um emitido em outro lugar” é uma rotina da burocracia alemã, uma das partes mais temidas da vida de todos nós.
“A Justiça devia estar esperando que eles mandassem um papel com o carimbo certo”, lamentou meu marido, que convive com a burocracia há mais de 50 anos.
Terra da burocracia e das cartas
Sim. Essa é a terra da obrigação e das cartas (de papel mesmo, tipo antigamente). Para viver aqui, é preciso ter pastas cheias de documentos que algum “Amt” (os escritórios do governo) podem solicitar para provar que pagamos impostos, moramos onde moramos, estamos vivos, etc. dos sentimentos.
“Se o juiz disse que elas são inocentes, elas não poderiam ter sido liberadas para um hotel?”, perguntou um conhecido no Twitter. Concordo, mas isso só seria possível se a aprendizagem alemã conhecesse a compaixão, o que não costuma ser o caso. As brasileiras não são as únicas vítimas desse sistema. De forma alguma.
Mas claro, a obrigação germânica não é a única culpada pelo pesadelo vivido pelos turistas. É inaceitável que funcionários terceirizados do aeroporto de Guarulhos façam parte de um esquema criminoso e que o local não seja corretamente fiscalizado. Tudo é revoltante nesse caso.
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Medo de ser a próxima vítima
E também apavorante. Desde que o pesadelo das duas se tornou público, ouço muita gente em pânico, com medo de ser vítima de algo parecido. Ir parar na “salinha” de um aeroporto e ser interrogado por estrangeiros é um medo antigo dos viajantes (já aconteceu comigo e não recomendo). Mas não acho que seja o caso de adotar medidas tão radicais e se privar de uma viagem.
Não vou me mudar da Alemanha por medo da burocracia, assim como não vou deixar de viajar para o Brasil para visitar a minha família com medo de que minha mala seja trocada.
Segundo dados do IBGE, em 2021 foram realizados cerca de 12 milhões de viagens por brasileiros (isso em um ano de pandemia, em anos “normais” o número chega a 20 milhões). Quantas dessas pessoas foram parar na prisão porque tiveram uma mala trocada?
Esse argumento é o mesmo que uso para lidar com meu eterno medo eterno de avião. Muitas vezes, em turbulências na zona intertropical, uma área que costuma ter precipitações (quem tem medo de avião estudar o tema), lembro do avião da Air France que caiu na região em 2009. Nessas horas, mesmo com meu medo teimando em ser irracional , lembro que centenas de aviões fazem a rota todos os dias e só um caiu, há quase 15 anos. Sempre ajuda.
Além de tentar vencer nossos medos, temos que cobrar as autoridades para que esse tipo de coisa não se repita, claro. Agora, no caso de tentar mudar a carreira alemã, confesso, não tenho muitas esperanças.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve no DW sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.