Baseado num romance de Mario Puzo e dirigido por Francis Ford Coppola, “O Poderoso Chefão” não é mera ficção. O escritor americano baseou-se em fatos reais — tanto que o cantor Frank Sinatra, que tinha ligação com a máfia e é citado no filme, quase o agrediu.
A trilogia “O Poderoso Chefão” mostra a força da Cosa Nostra na Sicília e sua chegada, com Vito Corleone, aos Estados Unidos.
O capo Vito Corleone era um “empresário” de visão e planejava, no futuro, limpar o nome da família. Por isso, não queria que seu filho Michael Corleone, um militar, se envolvesse nos negócios da máfia.
Porém, avaliando que o comércio de drogas poderia ser tão lucrativo quando os cassinos, outros mafiosos decidiram matar Vito Corleone (que, adicto dos cassinos e do sistema de proteção, era contrário à venda de cocaína — o que talvez seja uma licença “poética” de Mario Puzo). Armaram uma emboscada e o balearam. Logo depois, ele teve um infarto e morreu. Os chefões do tráfico de entorpecentes mataram seu filho Sonny, sucessor do pai, para deixar a máfia dos Corleones sem uma cabeça.
Michael Corleone, Mike, sentiu-se compelido a assumir o comando da máfia. Revelou-se estrategista tão hábil quanto o pai. Tornou-se tão astuto quanto perigoso e, por isso, temido.
Com a máfia consolidada, com muito dinheiro nos bancos, Mike Corleone decidiu seguir o caminho do pai e limpar os negócios. Sobretudo, porque sua herdeira, Mary Corleone, não iria assumir os negócios da família — exceto se fossem limpos.
Então, Mike Corleone buscou uma parceria com a Igreja Católica — dona do Banco do Vaticano e da Immobiliare.
No processo, Mike Corleone descobriu que grandes negócios legais — inclusive da Igreja Católica (o bispo-banqueiro do filme é uma referência ao real Paul Marcinkus, ex-presidente do Banco do Vaticano) — contêm pitadas de ilegalidade. Ele próprio, uma raposa, acabou ludibriado pelos homens ditos “legais”, ou, como diz o vulpino don Altobello, “homens de dois mundos”.
PCC já usa a política para lavar dinheiro
As máfias italianas hoje têm negócios em vários países da Europa, notadamente na Itália e na Espanha. Atuam em várias áreas, como o mercado imobiliário e no tráfico e comércio de drogas, como cocaína, heroína e outras.
Maior máfia brasileira — nem devia mais ser chamada de facção —, o Primeiro Comando da Capital atua na Europa em parceira com as máfias italianas, como a calabresa ‘Ndrangheta (cujos tentáculos já chegam ao Brasil).
O PCC segue as máfias italianas em pelo menos dois aspectos. Primeiro, está, neste momento, criando empresas legais — postos de gasolina, concessionárias de automóveis, distribuidoras de bebidas, construtoras de casas, empresas de transporte — para lavar o dinheiro que amealha com o tráfico de drogas e outras atividades ilegais.
Segundo, o PCC decidiu participar, com aliados, das disputas eleitorais. Na Itália um sócio do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi chegou a ser apontado como parceiro de uma das máfias do país, especialmente na área de construção civil.
O que, exatamente, quer o PCC: o poder político ou lavar dinheiro? De acordo com uma reportagem de “O Estado de S. Paulo”, “para as facções, ao contrário das milícias, não é o domínio do poder local que está em jogo, mas a oportunidade de obter novos lucros e lavar o dinheiro do tráfico de drogas em atividades ilícitas. É por isso que o apoio a candidatos a vereador e a prefeito é mais importante do que eleger deputados e senador”.
O PCC opera, de várias maneiras — principalmente por meio de pressões e ameaças —, para conquistar contratos vultosos em prefeituras do país.
Estima-se que o PCC fature cerca de 1 bilhão de reais por ano e não é nada fácil lavar tanto dinheiro (trata-se de uma estimativa, pois o faturamento pode ser muito maior — é difícil quantifica-lo — depois das ações no mercado externo). Por isso, é preciso abrir negócios em várias frentes. Como os negócios públicos envolvem quantias milionárias, se a máfia patropi conquistar grandes contratos, fica mais fácil lavar o dinheiro sujo. Ao mesmo tempo, com uma empresa legal operando com o setor público, fica mais difícil de ser investigada pela Polícia Civil, pela Polícia Federal e pelo Ministério Público (estaduais e federal).
O candidato a prefeito ou vereador precisa ser do PCC para receber o apoio da máfia? Não, mas precisa atender aos seus interesses. De acordo com o “Estadão”, “a atuação da facção passa pelo financiamento de campanhas de aliados, contaminação da máquina pública, captura de contratos públicos, ameaças a políticos e, até mesmo, a tentativa de lançar representantes próprios para disputar pleitos”.
Em Arujá, o PCC apoiou um candidato a prefeito e a empresa de aliados passou a fazer a coleta de lixo da cidade e, ao mesmo tempo, conquistou a Secretaria de Saúde. Esta acabou ocupada por indicados do PCC.
As empresas de transporte coletivo UPBus e Transwolff foram denunciadas por suspeita de ligação com o PCC. As duas estão sob intervenção. Um empresário chegou a ser preso pelo Operação Fim de Linha.
A Operação Decurio apurou que o PCC iria apresentar candidatos a vereador em Mogi das Cruzes e em Santo André. A mulher de um lavador de dinheiro do PCC seria candidata a uma vaga ao Legislativo pelo União Brasil. Em Santo André, um empresário, lavador de dinheiro do PCC, seria candidato à Câmara Municipal. Ele é do PSD.
As candidaturas acabaram barradas em virtude da ação eficiente da Polícia Civil e da Justiça. Cerca de 8 bilhões dos supostos “empreendedores” foram bloqueados pela Justiça.
O político de Mogi das Cruzes, que teve a candidatura barrada, é o ex-policial militar Edilson Ricardo da Silva, que, condenado à prisão, foi solto há pouco tempo. O ex-PM é associado a Tarcísio Escobar de Almeida e Júlio César Pereira, o Gordão. Os dois são suspeitos de envolvimento com o PCC.
Tarcísio Escobar e Júlio César teriam trocado automóveis de luxo por cocaína em nome do PCC. O primeiro participa das articulações do PRTB.
Na cidade de Marília, em São Paulo, Tarcísio Escobar esteve ao lado de Pablo Marçal, candidato do PRTB a prefeito de São Paulo, que já aparece em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, à frente do prefeito Ricardo Nunes, do MDB, e colado em Guilherme Boulos, do PT.
O império do PCC fica em São Paulo, mas a máfia tropical está se espalhando por todo o país — vendendo drogas e criando empreendimentos legais para lavar dinheiro. Atua também no exterior, ao lado de duas máfias italianas.
Brasil pode se tornar a Itália dos trópicos
Se o PCC e o Comando Vermelho — e há máfias médias, como o Novo Cangaço — se espraiaram pelo Brasil, atuando em várias frente, com conexões no exterior, para vender drogas em alta escala, o que pode ser feito pelos governos estaduais?
Em Goiás, o governo de Ronaldo Caiado age com firmeza no combate ao crime organizado. Há, claro, integrantes do PCC e do CV em Goiás — espécie de ponto de passagem de drogas para outros Estados —, mas em menor escala do que São Paulo, Rio de Janeiro e alguns Estados do Nordeste.
Mas os Estados não têm recursos suficientes para um combate amplo e sistemático de máfias bem aparelhadas como o PCC e o CV. Faltam até armas mais sofisticadas. Já as máfias patropis usam armas cada vez mais modernas e letais. Suas metralhadoras, fuzis e pistolas são as mais modernas, adquiridas não só no mercado local, mas também no internacional.
Ao tratar a criminalidade como um fenômeno puramente sociológico, com a conclusão de que resulta das desigualdades sociais, parte da esquerda comete um erro e acaba por não entender que há um fenômeno novo na praça.
O PCC e o CV são organizações modernas, com ações e aplicações financeiras globais, e não são produtos de problemas sociais. Com um faturamento de mais de 1 bilhão de reais por ano, o PCC é uma empresa altamente lucrativa e, portanto, ao menos seus principais dirigentes figuram na categoria de ricos, e até da dos muito ricos.
Combater organizações criminosas poderosas — máfias, insistamos, e não meras facções —, que usam tecnologia e armamento de primeira linha, comprados no Brasil e no exterior (há, por exemplo, armas fabricadas em Israel), requer uma aliança entre o governo federal, que tem sido lento no combate ao banditismo hipermoderno, e os governos estaduais.
Só o governo federal — sob direção do presidente Lula da Silva ou de qualquer outro político — tem recursos financeiros e estrutura adequados para um combate eficaz às máfias locais. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, parece inclinado a sair da fase dos estudos para a prática no combate ao crime organizado. Mas precisa ter um pouco mais de pressa. Os governos estaduais, que são os que realmente cuidam do país, ao lado dos municípios, não têm condições de enfrentar sozinhos e sem recursos financeiros grupos cada vez mais poderosos, como o PCC e o CV, além das submáfias independentes ou associadas.
No combate ao crime organizado, divergências político-ideológicas precisam ser deixadas de lado. Senão o Brasil se tornará — talvez já tenha se tornado — a Itália dos trópicos. Depois de se firmarem como empresas e com exércitos particulares, o PCC e o CV agora querem ter poder político. É gravíssimo o que está acontecendo. O país, com seus políticos, precisa acordar. Antes que seja tarde. Aqueles que flertam com o perigo, sem aceitar a seriedade dos fatos, podem, por vezes, acabar atropelado pela História. O Hitler de 1933 era o mesmo de 1939? Era, mas não parecia, por isso muita gente boa acreditou no nazista e dançou.
A democracia corre risco, pois, paralelamente ao golpismo da extrema-direita bolsonarista, se tem agora uma espécie de golpismo do crime organizado. O PCC quer constituir o primeiro Estado mafioso da história? Ainda não, aparentemente. Mas está cada vez mais forte, incontrolável e usando a política para se proteger e, sobretudo, para ganhar e lavar dinheiro.