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Brasil

Tarzan de Castro: o goiano ‘primo de Fidel’ que foi preso e torturado pela ditadura militar

Tarzan de Castro, aos 86 anos, relembra os acontecimentos que moldaram o Brasil moderno

Publicada em 17/03/24 às 19:49h - 22 visualizações

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Tarzan de Castro: o goiano ‘primo de Fidel’ que foi preso e torturado pela ditadura militar
 (Foto: Rádio RIR Brasil Goiânia - Direção: Ronaldo Castro - e Marcio Fernandes 62 99951- 6976)

Há 60 anos, em março de 1964, se iniciava um dos capítulos mais sombrios da história da República. Desaparecimentos, prisões arbitrárias, exílio e tortura — um goiano, líder do movimento estudantil, passou por tudo isso. Aos 86 anos de idade, Tarzan de Castro é uma memória viva dos anos de chumbo. Ele, que ficou nacionalmente conhecido ao ser chamado de “primo de Fidel Castro” por Carlos Lacerda na tribuna da Câmara dos Deputados, conversou com o Jornal Opção e relembrou os acontecimentos que moldaram o Brasil moderno. 

Origens

“Não é fácil chamar Tarzan, não, viu?”, diz ele, rindo. “Já morei em quatro continentes e, em todo lugar, meu nome faz as pessoas rirem. Tenho de levar na brincadeira, mas é um nome muito chamativo, ruim para quem foi acusado de ser espião comunista”.

Nascido em Mato Grosso com o nome do personagem de Edgar Rice Burroughs, Tarzan de Castro foi criado em Jataí até os 17 anos de idade. Com apoio do deputado estadual José Feliciano Ferreira, se mudou para Goiânia em 1956 para estudar e trabalhar no Liceu. Ali, se tornou amigo de jovens que, futuramente, se tornariam a elite intelectual e cultural do estado. 

No movimento estudantil, por exemplo, sucedeu Sanito Arantes (irmão de Aldo Arantes) na presidência do Grêmio Félix de Bulhões, com o escritor José Mendonça Teles como vice em sua chapa. Foi presidente da União dos Estudantes Goianos (UEG) e fundou a União Goiana dos Estudantes Secundaristas. 

Tarzan de Castro começou a pensar na divisão do mundo no contexto da Guerra Fria. A Revolução Cubana (1953 à 1959) estava em curso, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) tinha enorme influência, a cena de efervescência cultural trazia novas ideias para Goiás, um estado que era ainda mais conservador e rural do que hoje. Entretanto, o que realmente mudou sua vida foi um livro: Os Dez dias que abalaram o mundo, de John Reed.

Livro de Tarzan de Castro | Foto: Jornal Opção

Tarzan diz que, até aquele momento, sentia desconfiança quanto às ideias de esquerda. Mas o livro, dado a ele pelo amigo Antônio Siqueira, colega da república na Avenida Paranaíba onde Tarzan também morava, desorganizou suas convicções. “Aos poucos, a leitura mexeu comigo. Foi derrubando vários preconceitos que eu tinha e nem sabia. Pela primeira vez, passei a pensar nas minhas próprias posições. Foi uma verdadeira vacina de amplitude”, lembra-se ele. 

Na época, o movimento estudantil podia muito. A organização dos secundaristas fazia parte dos comitês que decidiam os preços das entradas em parques e locais de diversão, os ingressos de teatros, cinemas, circos e eventos culturais públicos. Os estudantes eram corresponsáveis também por determinar anuidades máximas cobradas por colégios particulares. 

O cargo de presidente da União dos Estudantes tinha relevância política, e essa eminência fez com que Tarzan de Castro fosse notado por Mauro Borges, filho do construtor de Goiânia, Pedro Ludovico Teixeira. Mauro Borges queria que Tarzan orientasse seus dois filhos, Maurinho e Ubiratan, que estavam interessados em ingressar no movimento estudantil.

Tarzan de Castro escreve em seu livro de memórias, Vida, Lutas e Sonhos, sobre o período: “Quando havia campanhas eleitorais, todo candidato a governador convidava um líder estudantil para participar como orador nos comícios. Ele me convocou a participar de sua campanha. Foi um período fantástico! A veemência com que defendemos nossos ideais, se não era sábia, era apaixonante. Depois de eleito e empossado, Mauro Borges me convidou para participar no palácio como assessor para a Juventude e a Educação.”

A justificativa para o golpe

Mauro Borges era coronel, recebeu a condecoração da Ordem do Mérito Militar e apoiou o golpe, mas posteriormente, foi deposto pelo regime. A explicação, diz Tarzan, é que, apesar de ter origem militar, o governador era visto como “esquerdista”. 

Tarzan de Castro afirma: “Mauro tinha uma cabeça muito aberta. Era de uma corrente nacionalista e democrática. A primeira coisa que fez no poder foi dar o título de terra para os posseiros que tinham feito a revolta de Trombas e Formoso. Ele visitou a França e, inspirado pelo que viu na Europa, distribuiu terras do governo (na época, boa parte das terras eram devolutas), promovendo uma série de medidas no sentido de dar ao campo de Goiás uma feição Moderna. Interviu para a melhoria da produção agrária e criou institutos para cuidar da qualidade do trabalho no campo, dando direitos aos trabalhadores. Fez dois governos arrojados, mas vistos como de esquerda.”

Revista Vera Cruz, 1961 | Foto: Reprodução

Por isso, dentro de seu próprio partido, o PSD, surgiu uma corrente que o atacava. “Seu tio, Bebé Borges, de Rio Verde, foi um dos líderes desse segmento que o classificava como comunista.” O argumento ficou mais forte quando Mauro Borges se uniu à Luta Legalista, que teve o propósito de garantir a posse de João Goulart em 1961. Mauro Borges garantiu a posse do presidente visto como de esquerda ao lado dos governadores Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul; Miguel Arraes, de Pernambuco; e João de Seixas Dória, que viria a se tornar governador de Sergipe. O golpe só viria em 1964, mas Mauro Borges estava marcado como um militar dissidente. 

Em 1961, no cargo de assessor, Tarzan de Castro foi convidado pelo recém instaurado regime cubano para conhecer a ilha. Passou um mês em Cuba, em Santiago e Sierra Maestra, onde começou a resistência ao governo de Fulgêncio Batista. “Cuba era muito festiva. Em uma boate fantástica chamada Tropicana, tive duas namoradas e provei dos sabores calientes da revolução”, escreve ele sobre o romantismo com que a revolução era vista naquela década. 

Hoje, sóbrio e crítico, Tarzan de Castro afirma que havia uma ingenuidade muito grande em acreditar que a Revolução Cubana serviria de modelo a ser replicado no mundo. “Cuba é uma ilha pequena. Querer aplicar focos de guerrilha no Brasil era uma utopia infantil”, diz ele. Mas isso não impediu que os revolucionários brasileiros tentassem. 

Ainda em Cuba, Tarzan de castro fez contato com pessoas ligadas ao advogado Francisco Julião e Clodomir Morais, deputado estadual por Pernambuco. Julião e Clodomir Morais eram os responsáveis pelas chamadas Ligas Camponesas, focos de guerrilha que tentavam replicar “na lei ou na marra” o que tinha dado certo em Cuba. Tarzan assumiu a frente das Ligas em Goiás e, ao retornar para o Estado, foi questionado por Mauro Borges.

Revista O Cruzeiro, 1962 | Foto: Reprodução

O governador chamou Tarzan em seu gabinete e pediu explicações. “Ele disse que gostava muito de mim e que éramos amigos, mas, na condição de assessor do governo, eu não deveria me envolver nesse tipo de atividade. Eu menti, disse que aquilo não existia.” Mauro Borges tinha informações da Polícia Federal que Tarzan estava, sim, envolvido com as ligas, e deu-lhe um tempo para pensar. “Deixou claro que eu só continuaria como seu assessor se me desvinculasse dos campos.”

Tarzan de Castro foi chamado por Clodomir Morais, o chefão das Ligas Camponesas, para ir ao Rio de Janeiro. Clodomir disse a Tarzan que havia um foco armado em Goiás (hoje Tocantins), em Dianópolis. O campo estava em risco de ser descoberto pela Polícia Militar, e Clodomir Morais queria a ajuda de Tarzan de Castro para disfarçá-lo e, com seus contatos no governo, despistar os investigadores. 

“Quando cheguei a Dianópolis, o quadro estava comprometido. Toda Dianópolis já sabia que havia guerrilheiros ali. Tentei desarmar o pessoal, mandá-los embora, mas os jovens entusiasmados em um lugar isolado não me ouviram. Obviamente, tudo foi descoberto. A direita brasileira me colocou como organizador do movimento. Carlos Lacerda falou que eu era primo do Fidel Castro, por conta do meu sobrenome. Isso pegou na imprensa nacional e fiquei marcado.”

Anos depois, em 1964, Mauro Borges apoiou o golpe militar. “Ele achava que aquele governo seria provisório. Essa era a promessa do general Castelo Branco: convocar eleições gerais em seis meses. Nada disso aconteceu.” A ala do PSD que antagonizava o governador, sentindo a oportunidade de poder, articulou pela queda de Mauro Borges.

Ditadura

Tarzan de Castro fugiu do Rio de Janeiro para a fazenda de seu irmão mais velho, em Pinhas, Goiás. Alguém, não se sabe quem, o delatou, e a Polícia Militar o encontrou e prendeu por ser membro do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Tarzan conseguiu comunicar sua prisão a sua mãe, e a família o acompanhou. Com auxílio de um grupo de advogados legalistas, lutaram por um habeas corpus para tirá-lo da prisão no Rio de Janeiro, para onde foi transferido.

“Eu fui barbaramente torturado no quartel do exército, porque eles queriam derrubar o Mauro Borges”, diz Tarzan de Castro. “Como eu tinha sido assessor do governador e conhecido por ser da guerrilha de Dianópolis, queriam que eu apontasse Mauro Borges como organizador das guerrilhas. Eu não aceitei de jeito nenhum. Eles me torturavam e diziam: ‘Deixa de ser bobo, denuncie esse cara e fique livre’, mas nunca disse isso, porque não era verdade.”

Após 1964, alguns presos políticos foram transferidos para o batalhão da Guarda Presidencial em Brasília. Em uma ocasião, a imprensa foi convidada pelo regime para conhecer o presídio maquiado, com a intenção de mostrar que tudo estava “nos conformes”. Tarzan de Castro conseguiu escreveu tudo que havia lhe acontecido e, sorrateiramente, enfiou no bolso de um jornalista do Correio Braziliense a sua denúncia. 

O relato da tortura foi publicado na imprensa e Pedro Ludovico, como senador por Goiás, leu o relato de Tarzan de Castro no Senado Nacional. “Ele argumentou que estavam tramando pela queda de Mauro Borges, filho dele, mas não adiantou. A União Democrática Nacional (UDN), juntamente com a direita do PSD, criaram um clima de denúncia para derrubar Mauro Borges.”

Rezende Monteiro, vice de Mauro Borges, ajudou a derrubar o governador na intenção de ocupar seu lugar, mas quem assumiu foi um militar, marechal Ribas Junior. A denúncia deu força para o argumento de seu habeas corpus e Tarzan de Castro foi libertado. Livre e ligado à clandestinidade do PCdoB, um partido ilegal, foi morar na cidade de São José do Rio Preto, no estado de São Paulo. Lá, ficou responsável por dar assistência a outros perseguidos. Preso novamente, foi torturado outra vez, até ser libertado. 

Exílio

Quando saiu, ainda ligado ao PCdoB, aceitou o convite para deixar o país. Foi para a China, fazer um curso político e militar, com dez ou 15 outros brasileiros (três goianos no total: Tarzan, Gerson Parreira e Hélio Cabral). Lá, foram descobertos e receberam a mensagem do partido: “sabem que vocês estão aqui. Não podem voltar.”

Tarzan de Castro diz ter gostado de sua estadia na China, porque conheceu o país, mas começou a discordar do partido. “Eles tinham ideias de revolução armada, e eu pensava que as mudanças deveriam ser graduais, de reforma democrática. Por isso, acabei excluído do movimento e decidi voltar para a América do Sul.”

Após tentar entrar no Brasil pela Amazônia e ser preso mais algumas vezes, acabou se estabelecer no Chile de Salvador Allende. Em 1973, outro golpe militar. O presidente foi fuzilado em seu gabinete e Pinochet se estabeleceu no poder.

“Lá, fui preso e barbaramente torturado, muito mais do que no Brasil. Fui inclusive foi interrogado por oficiais do exército brasileiro, preso no estado nacional do Chile. Pensei que fosse morrer. Eles nos deixavam sem comida durante quase um mês, davam apenas uma xícara de leite por dia, às vezes um pão. Eu saí de lá, graças às Nações Unidas. Havia uma pressão mundial enorme para libertar os presos políticos estrangeiros em território chileno. Quando garantiram exílio, pude escolher um destino entre a Suécia e a França, e escolhi a França.”

Tarzan de Castro ficou na França até a anistia, em 1979. Ele se lembra da França com carinho, por ter lhe acolhido e fornecido a oportunidade de estudar. Estudou direito e história, e se formou em sociologia pela Sorbonne. Se envolveu com a vida cultural francesa, com a comunidade estrangeira, e começou a trabalhar para uma empresa de urbanismo. “Considero a França minha segunda pátria, por ter me dado proteção e a possibilidade de continuar estudando e exercendo uma atividade. Do ponto de vista intelectual, foi um momento maravilhoso”, diz.

Folha de Goiaz, 1979 | Foto: Reprodução

Anistia

Quando voltou ao Brasil, Tarzan de Castro foi eleito deputado estadual pelo PMDB da décima Legislatura de Goiás, de 1983 a 1987. Na Câmara Federal assumiu como Suplente o mandato de deputado federal na legislatura de 1987 a 1991, de 3 de janeiro a 29 de outubro de 1989. Até hoje, aos 86 anos de idade, é sondado para voltar para a política. Diz, com certa frustração, esperar que novos nomes ocupem seu lugar.

“Hoje o movimento estudantil acabou”, diz Tarzan de Castro. “Não há centros de estudo que tenham representatividade na sociedade, que tenham novas propostas políticas, que estudem economia, sociologia. A sociedade está aparentemente acéfala, polarizada em ideias de esquerda e direita que são do século passado. Parece que há um desinteresse pela política como solução de problemas, e eu espero que eu esteja enganado, porque a política é a principal atividade humana, queiramos ou não.”

Tarzan de Castro diz que a sociedade ainda tem contas a acertar com seu período ditatorial. “A ditadura nunca foi passada a limpo no Brasil. Os próprios ditadores manobraram quando a coisa estava terminando e inventaram uma anistia geral e irrestrita. Todos os torturadores e assassinos foram perdoados, ninguém foi punido. Nunca foi feito um esforço para explicar e responsabilizar quem deveria ser responsabilizado. Essa punição já não pode mais ser feita fisicamente, porque praticamente todos daquela época já morreram, mas deveria ser feita historicamente.” 

“A Comissão da Verdade está paralisada. Hoje, parece que vivemos uma conivência, uma espécie de acordo de tampar esse buraco e esquecer isso. Mas, na história, isso é impossível. É impossível esquecer; vai continuar voltando para nos assombrar enquanto não encararmos como a Argentina, Chile e Uruguai fizeram. Era melhor esclarecer tudo, para que nunca mais haja novo regime ditatorial no país. Nossa democracia é frágil e essa chaga sempre volta.”





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