Murilo Gaspardo, Anny Barbosa, Letícia Rezende dos Santos.
No dia 14 de setembro, a Câmara dos Deputados aprovou, com 367 votos favoráveis e 86 contrários, o conjunto de projetos de lei que ficou conhecido como minirreforma eleitoral de 2023. A proposta é constituída pelo Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 192/2023 e pelo Projeto de Lei (PL) nº 4.438/2023. Em suma, os projetos tratam, respectivamente, da flexibilização das regras de inelegibilidade e de alterações referentes a prestações de contas eleitorais, candidaturas femininas, utilização do Fundo Partidário, modalidades de campanha e calendário eleitoral.
Caso venha efetivamente a ser aprovada pelo Senado e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a proposta, a despeito de ser tratada como uma ‘minirreforma’, implicará alterações bastante abrangentes e relevantes no Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de julho de 1965), na Lei da Inelegibilidade (Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990), na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995) e na Lei das Eleições (Lei n 9.504, de 30 de setembro de 1997).
Devido ao princípio da anterioridade eleitoral, consagrado no art. 16 da Constituição Federal, as alterações, caso venham a ser aprovadas e sancionadas, não valerão já para as eleições de 2024, nas quais os brasileiros irão escolher seus prefeitos e vereadores. Para que isso fosse possível, o processo deveria ter sido concluído até o dia 05 de outubro. Houve um grande empenho do deputado e presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e uma forte pressão sobre o Senado, e para que a tramitação ocorresse dentro desse prazo.
Esta movimentação esbarrou na resistência exercida pelo presidente do Congresso, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que se posicionou de forma contrária a uma aprovação ‘às pressas’. Embora não haja mais a possibilidade de que o pacote legislativo venha a configurar as eleições de 2024, permanece inalterada a necessidade de um amplo debate público sobre o tema.
Além do escasso tempo para debate no próprio Congresso e da inexistência de uma discussão mais aprofundada na sociedade – o que por si só é problemático – os projetos apresentam vários pontos bastante controversos. Entre eles, a flexibilização de punições, a maior dificuldade para a fiscalização das prestações de contas pelos partidos, e retrocessos nas normas de estímulo à ampliação da representatividade feminina, de pretos e pardos nos órgãos legislativos.
Mudanças na contagem do tempo para inelegibilidade
Em se tratando da Lei da Inelegibilidade, por exemplo, o PLP nº 192/2023 altera os termos iniciais de contagem do prazo das sanções impostas, de modo a garantir que o período máximo de inelegibilidade de um candidato não ultrapasse oito anos. De modo geral, conforme a legislação vigente, esses oito anos são contados a partir do fim da legislatura para parlamentares, governadores, prefeitos e seus respectivos vices cassados; do fim da condenação, para políticos condenados por crimes comuns; e do fim do mandato, para políticos que renunciam após a abertura de processo de cassação. As novas regras antecipariam a contagem, reduzindo drasticamente o período de cumprimento das sanções em diversas situações práticas.
Obstáculos à fiscalização de recursos públicos
Por sua vez, o PL nº 4.438/2023 traz uma série de novidades questionáveis em relação a prestação de contas, ao uso dos Fundos Eleitoral e Partidário e à propaganda eleitoral. Elas incluem o fim da obrigação de prestar contas parciais durante a campanha eleitoral, a impossibilidade de restrição de acesso a recursos públicos por período maior do que a falta ou o saneamento da irregularidade quando da prestação de contas, e a possibilidade do uso do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas para o aluguel de aeronaves e embarcações.
Em combinação com outras mudanças propostas pelo PL, como a proibição de suspensão dos repasses do Fundo Eleitoral durante o 2º semestre dos anos das eleições, a impenhorabilidade deste fundo, e a proibição da expansão dos efeitos de uma punição aplicada a uma sigla para toda a Federação Partidária, podem criar obstáculos para a fiscalização do uso de recursos públicos e para a punição de eventuais irregularidades.
No tocante às propagandas eleitorais, o projeto permite sua realização no dia em que acontecem as votações, desde que não contenha nenhuma forma de impulso de anúncios, o que pode ser visto como a legalização – embora não expressa – da propaganda de boca de urna.
Verba para candidaturas de pessoas pretas pode ser usada para candidatos brancos
Embora consolide o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a obrigatoriedade do repasse mínimo de 30% do Fundo Eleitoral às candidaturas femininas e pretas – podendo ser maior desde que proporcional a quantidade desses candidatos –, a proposta permite que essa verba seja empenhada em campanhas de homens brancos, desde que estas beneficiem mulheres e pessoas pretas, como a partir de propagandas conjuntas ou das famosas “dobradinhas”. Ademais, a Câmara aprovou a criação de um limite, até então inexistente, de R$ 100 mil para multas a partidos que descumpram as cotas mínimas de propaganda gratuita para candidatas e candidatos pretos. E, também, a extinção da obrigação de que cada legenda cumpra o percentual mínimo de candidaturas femininas, bastando que a Federação como um todo conte com 30% de candidatas.
Atualmente, não há definição legal do que caracteriza a fraude à cota de gênero. Com a justificativa de criar critérios objetivos para definir as “candidaturas laranjas” – ou seja, candidaturas fictícias que são utilizadas para burlar a cota de gênero prevista em lei –, o texto final remetido ao Senado elenca apenas duas hipóteses de enquadramento: a prova de que não houve campanha ou a constatação de a candidata obteve votação nula ou insignificante. Na proposta do relator Deputado Rubens Pereira Jr. (PT-MA) outras duas situações eram apontadas: a ausência de repasses às campanhas e a inexistência de gastos. É importante assinalar que uma previsão demasiadamente restritiva pode limitar a cassação de mandatos baseada neste ardil.
Proibição de candidaturas coletivas
Sob o argumento de reduzir a fragmentação do sistema partidário brasileiro – motivação seguidamente evocada nas várias reformas que ocorreram desde 2015 –, o PL 4.438/2023 altera, mais uma vez, o cálculo das “sobras”, ou seja, das vagas não preenchidas na primeira etapa do cálculo de distribuição do sistema proporcional de representação.
Em 2017, a Lei nº 13.488 determinou a participação de todos os partidos e coligações que concorreram no pleito neste processo. Em 2021, a Lei nº 14.211 restringiu o direito a disputar as sobras aos partidos que obtivessem ao menos 80% do quociente eleitoral e, cumulativamente, a candidatos que alcançassem 20% desse quociente. Essa regra foi aplicada nas eleições proporcionais de 2022, mas contestada no Supremo Tribunal Federal (STF) e, até o momento, considerada inconstitucional pelo relator e ex-ministro Ricardo Lewandowski. Caso seja sancionada, a nova legislação permitirá que somente siglas que atinjam 100% do quociente eleitoral concorram às sobras.
A despeito de não serem poucas as evidências de hiperfragmentação partidária e da nocividade desse fenômeno à organização política nacional, há de se ter cautela com restrições excessivas. A exigência de um mínimo de relevância eleitoral aos partidos que concorrem às sobras é medida fundamental e plausível. No entanto, critérios desproporcionalmente rígidos nos moldes dos implementados na reforma de 2021 – o que não parece ser o caso da atual proposta – ameaçam valores bastante caros à democracia, como o pluralismo político.
Os projetos também estabelecem a proibição às “candidaturas coletivas”. Essa medida estava ausente tanto na redação original quanto no parecer do relator. Foi inserida posteriormente por emenda do deputado Bibo Nunes (PL-RS) e aprovada pela Câmara dos Deputados. Trata-se de um tema cuja complexidade excede os limites deste artigo e que mereceria um debate mais aprofundado antes de uma decisão do legislador. Por um lado, as “candidaturas coletivas” constituem uma estratégia para fazer frente ao caráter oligárquico dos partidos. Viabilizam, sobretudo, a eleição de representantes de segmentos sociais usualmente excluídos dos órgãos legislativos, e propõem uma forma menos personalista de exercício do mandato parlamentar. Por outro lado, de certa maneira há dificuldades para sua conciliação com o modelo institucional de organização da competição política e do funcionamento do Legislativo (bem como de suas relações com o Executivo), cujo fundamento é a institucionalização de coletividades pelos partidos políticos.
Aspectos positivos
Há, todavia, aspectos positivos e menos controversos na proposta da minirreforma. Ela amplia o rol de vítimas de violência política para qualquer mulher que sofra essa violência em suas atividades políticas, partidárias e eleitorais; amplia para seis meses o prazo de afastamento de servidores públicos, policiais, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública que queiram concorrer a um cargo eletivo; determina a obrigação de que estados e municípios forneçam transporte coletivo gratuito no dia das eleições, não podendo haver reduções do serviço habitualmente prestado; e facilita as doações via Pix. Da mesma forma, o calendário eleitoral é, em certo sentido, ‘adiantado’, dilatando o período de análise, contestação e apreciação das candidaturas registradas.
Movimento de autoproteção da classe política
Há, também, o argumento de que a minirreforma corrige excessos e imprecisões da legislação, ampliando a segurança jurídica em sua interpretação e aplicação. Entretanto, como exposto, parece não ser sempre esse o propósito dos projetos aprovados pela Câmara dos Deputados.
Mudanças casuísticas na legislação eleitoral, aprovadas no limite do prazo estabelecido pelo princípio constitucional da anterioridade, ocorrem há, pelo menos, nove anos consecutivos. Conquanto haja exemplos de reformas relevantes, sobretudo as impulsionadas pelo sentimento geral de insatisfação com o sistema político – cujas manifestações mais claras foram os protestos de 2013 –, é evidente a existência de um movimento de autoproteção e de manutenção do status quo.
Vários dos dispositivos trazidos pela minirreforma vão na contramão da tendência das reformas do sistema partidário-eleitoral realizadas desde a Constituição de 1988, as quais apresentavam o sentido de ampliar a transparência e combater a corrupção no processo eleitoral, bem como de fomentar maior diversidade e equidade na representação legislativa. Além disso, a experiência demonstra que mudanças no sistema partidário-eleitoral demandam sucessivas eleições para se consolidarem e gerarem os efeitos pretendidos, não sendo positivo para o amadurecimento da democracia a realização de reformas constantes e, muitas vezes, em direções diferentes.
Esse processo também é bastante revelador da natureza e da força do “Centrão”, bem como do isolamento das elites políticas em relação à sociedade quando se trata de tomar medidas no próprio interesse – o que, com raras exceções, abrange partidos e parlamentares das mais diferentes posições ideológicas. Os desafios da democracia brasileira, portanto, vão muito além do processo de autocratização interrompido com as eleições de 2022.
É oportuno, portanto, o posicionamento do Senado no sentido de não acelerar a aprovação da minirreforma e viabilizar o debate público que os temas de que ela trata exige. Assim, as propostas ora apresentadas se somarão a dois outros projetos de reforma eleitoral que tramitam no Congresso Nacional.
O primeiro e mais ambicioso deles é a criação de um novo Código Eleitoral (PLP nº 112/2021), de cerca de 900 artigos, que revoga toda a legislação eleitoral-partidária vigente. O texto, aprovado em setembro de 2021 pela Câmara, aguarda votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) do Senado e, semelhante à minirreforma, enfraquece a fiscalização e a transparência das contas eleitorais, além de restringir a divulgação de pesquisas eleitorais na véspera e no dia das eleições e de buscar limitar a atuação da Justiça Eleitoral.
A outra é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 18, de 2021 – conhecida como PEC da Anistia por poupar partidos que não cumpriram a cota de gênero ou que não utilizaram os percentuais mínimos de 30% de financiamento de campanhas femininas e de 5% para a promoção e difusão da participação política de mulheres nas últimas eleições. A proposta também limita a 20% o montante das verbas destinadas às candidaturas de pretos e pardos, possibilita que agremiações lancem chapas compostas só por homens – deixando os 30% da cota feminina sem preenchimento – e institui uma reserva de vagas para mulheres, nas casas legislativas, de 15% – o que é positivo para pequenas circunscrições eleitorais, mas é obsoleto e inferior ao percentual já alcançado pelas mulheres na Câmara dos Deputados e na maioria das Assembleias Legislativas. Embora possa acarretar desgastes perante o eleitorado, a PEC – já aprovada pela CCJC da Câmara – conta com um amplo apoio, que abrange do PT, de Lula, ao PL, de Bolsonaro. O maior empecilho à sua aprovação é a hesitação dos senadores.
Murilo Gaspardo é Vice-diretor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da UNESP, docente do Departamento de Direito Público e do Programa de Pós-graduação em Direito.
Anny Barbosa é estudante de graduação em Direito na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais e bolsista de treinamento técnico 1 da FAPESP.
Letícia Rezende Santos é mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais e bolsista da FAPESP.
Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.
Imagem acima: cabina de votação com a nova urna modelo UE2020 é apresentada em seção eleitoral simulada no Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro.Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil.