De uma forma parecida com o que aconteceu no primeiro governo do petista, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, sofre desgastes e não conta com o apoio explícito do presidente Lula . Ela corre o risco de perder poder, assim como o Ministério dos Povos Indígenas, liderado por Sonia Guajajara (Foto:Pablo Valadares/Câmara dos Deputados)
Brasília – Os desgastes de pautas ambientais e indígenas no Congresso Nacional, com aparente desarticulação do governo Lula (PT) para defendê-las, leva lideranças dos dois segmentos a acreditar que há o risco de o modelo bolsonarista de governar ser retomado no país, mesmo após o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ter perdido a eleição e ainda não ter se consolidado como líder da oposição.
O desgaste foi agravado esta semana com o avanço, no Congresso, de uma Medida Provisória que reestrutura a Esplanada dos Ministérios. Aprovada por comissão mista formada por deputados e senadores, a MP que reorganiza o governo Lula recebeu emendas parlamentares e, na versão votada, tira funções do Ministério do Meio Ambiente, comandado por Marina Silva, e diminui as atribuições do recém criado Ministério dos Povos Indígenas, liderado por Sonia Guajajara.
A situação atual de Marina remete à sua primeira passagem como ministra de Lula, entre 2003 e 2008. A ministra deixou o cargo em maio de 2008 após disputa com a ala desenvolvimentista do governo – na ocasião, não contou com o apoio do presidente e ficou sem condições de continuar o trabalho ambiental.
Sob o comando do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o Congresso toma as rédeas de importantes pautas ambientais e indígenas e tenta dominar inclusive a atribuição da demarcação das terras indígenas, a partir da tese do marco temporal.
A bancada ruralista da Câmara dos Deputados aprovou a urgência para a tramitação do projeto de lei 490/2007, que define a data da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988) como marco temporal para o direito às terras indígenas. O projeto estabelece que, para serem consideradas terras indígena, as áreas reivindicadas teriam que estar ocupadas na data em que a Constituição foi promulgada, ignorando direitos históricos, além dos massacres a que foram submetidos os povos ancestrais.
A aprovação do regime de urgência ignora que a tese do marco temporal está na pauta de votação do Supremo Tribunal Federal (STF). A votação foi marcada para o dia 7 de junho pela presidente do STF, Rosa Weber.
Apesar da aposta de parlamentares no desgaste de Marina Silva, a ministra apareceu nesta quinta-feira (25) calma na cerimônia de posse do novo presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), Mauro Pires.
“Não houve votação final no plenário”, disse, referindo-se a decisões tomadas por parlamentares no dia anterior. “Ainda temos até terça-feira para dar continuidade aos diálogos. E é claro que temos dificuldade, já que a oposição é maioria”.
Um dos pontos fundamentais nas articulações da bancada ruralista é a retirada do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e da Agência Nacional de Águas (ANA) do Meio Ambiente, além da flexibilização do licenciamento ambiental em obras.
A Medida Provisória 1.154/2023, em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reorganiza a estrutura dos ministérios e de outros órgãos do Executivo, recebeu 15 votos favoráveis e três contra na comissão mista no Congresso. As mudanças ainda precisam passar pelos plenários da Câmara e do Senado.
Em uma quarta-feira considerada complicada para o governo Lula, as redes sociais foram inundadas por críticas de aliados e informações sobre as frustrações de Marina Silva e Sonia Guajajara em relação ao posicionamento do presidente.
A ministra dos Povos Indígenas chegou a declarar, em entrevista, estar frustrada devido ao pouco empenho de Lula nas articulações em torno da Medida Provisória.
“É um momento difícil para o nosso governo. Uma parte do Congresso, que é maioria, quer impor ao governo eleito o modelo de gestão do governo Bolsonaro. Respeitamos a autonomia dos poderes, mas o governo tem o direito constitucional de se organizar na melhor forma de fazer sua gestão recuperando competências perdidas e competências dos ministérios recentemente criados como dos Povos Indígenas”, destacou Marina.
As frustrações das duas ministras, especialmente de Marina, ocorreram em um contexto em que a ministra do Meio Ambiente trava uma disputa com o senador Randolfe Rodrigues, do Amapá, que se desfiliou da Rede Sustentabilidade, em “caráter irrevogável”, em meio a um embate sobre a posição de Marina contra a exploração de petróleo na foz do Amazonas nos moldes propostos pela Petrobras. Também neste caso, a ministra não contou com o apoio declarado do presidente.
Para esta sexta-feira (26) está prevista uma reunião entre Lula, Marina, Sonia e a articulação política do governo.
Em nota, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) afirmou ter o sentimento de que as pautas ambientais e indígenas foram utilizadas, em alguma medida, como moeda de troca em um cenário de disputas extremas entre o Legislativo e o Executivo.
“Em uma interpretação preliminar, isso nos assusta porque compreendemos que existe um descompasso entre os compromissos assumidos do governo Lula com a pauta indígena e ambiental e a fragilidade com que são defendidas quando colocadas sobre mesas de disputas de poder”, diz o documento.
Para a organização, pautar e aprovar a urgência do marco temporal representou um recado do Legislativo de que as políticas anti-indígenas empreendidas no governo Bolsonaro continuarão a ser defendidas.
“Ao resgatar o PL, aprovando sua urgência, a Câmara fortalece os ataques às bases dos direitos fundamentais dos indígenas e expõe a risco de vida os diversos povos, principalmente aqueles que historicamente foram vítimas dos mais diversos tipos de esbulho”, afirma a Coiab. “Recebemos com muita tristeza, mas também com muita consciência o recado transmitido pelos legisladores brasileiros, e afirmamos que estaremos mais que nunca alertas e incidindo de forma qualificada contra todas e quaisquer movimentações que visem violar a Constituição e os direitos indígenas”.
Desafios
A chegada das “bombas” ambientais já estava prevista, como alertou o deputado Nilto Tatto (PT-AM) à Amazônia Real em 28 de março, quando o governo completaria 100 dias. “Precisamos ficar atentos, porque a oposição, especialmente a extrema direita, a todo o momento tenta impedir que o governo tenha sucesso”.
Ele já alertava, por exemplo, para o risco da retirada do CAR (Cadastro Ambiental Rural) do Ministério do Meio Ambiente. O instrumento é importante para o controle de terras privadas e conflitos em áreas de preservação. A MP aprovada na comissão mista transfere o CAR para o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, chefiado pela economista Esther Dweck.
“Isso é um risco porque pode fazer com que o governo brasileiro não venha cumprir com as expectativas que todos têm de diminuir drasticamente o desmatamento e conservar a biodiversidade”, disse Tato na ocasião, quando havia o temor de o CAR ser transferido para o Ministério da Agricultura.
O deputado disse que a vontade de Lula estava expressa na nomeação de Marina Silva como ministra e que os parlamentares da base trabalhariam para garantir o texto original da MP. Afirmou também que não acreditava no sucesso das emendas ruralistas na Câmara e no Senado, por colocar em risco a execução do projeto de governo petista.
A falta de articulação da base governista, no entanto, chamou a atenção em uma quarta-feira em que ficou óbvia a crise entre Marina Silva e o Centrão.
O presidente da Associação dos Servidores Ambientais (Ascema), Denis Rivas, disse nesta quinta-feira (25) à Amazônia Real que ainda não tem a dimensão total dos efeitos das mudanças na MP. Mas a instituição que representa servidores do Ministério do Meio Ambiente, Ibama e ICMBio publicou nota pública em que enfatiza que mais uma vez as agendas ambientais e dos povos originários são direcionadas a projetos de destruição.
O documento enfatiza a continuidade das investidas para o desmonte do ministério e do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), iniciadas em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro.
“O sopro de suavização da resistência com a nova gestão que ocupa o Palácio do Planalto, visto que hoje há um diálogo democrático e os servidores não são marcados como inimigos, foi a publicação da Medida Provisória (MPV) 1154/2023, que reestabeleceu e reforçou competências do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, saqueadas no último desgoverno”, ressaltou a nota, chegando a avaliar uma possível “ingerência” do Legislativo sobre o Executivo.
Política nas ruas
Mobilização indígenas, em Brasília, contra o PL 490 (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real/2022)
“A solução é fazer política e os servidores se manifestarem nas ruas”, afirma o professor José Geraldo de Sousa Júnior, ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB) e professor titular da Faculdade de Direito desde 1985. Ele também é um dos fundadores do projeto Direito Achado na Rua, surgido em 1986 na atuação em dos direitos civis e mediação de conflitos.
O professor afirma que não existe ingerência, mas sim a legítima atuação de bancadas, que devem ser combatidas com pressões políticas contrárias. “Ingerência não há. São competências distintas”. Ele considera que esteja na essência das emendas apresentadas à MP da reestruturação do governo não apenas defender os interesses de grupos econômicos nos territórios indígenas, mas propositalmente criar tensões entre os poderes.
O jurista cita a coincidência da urgência para a tramitação do projeto do marco temporal, com a retomada da pauta no STF. “Uma impertinência submeter essa tese esdrúxula quando há uma pendência de julgamento”, opina.
Na opinião dele, a demora nas decisões dos ministros do STF sobre o tema se devem aos cuidados, pois estão sob a responsabilidade de “apenas 11”, que sofrem pressão de toda a sociedade. Ele enfatiza em especial o voto do ministro Edson Fachin, ao reconhecer que a posse da terra indígena deve ser definida por tradicionalista e não por um marco temporal. “Brilhante, politicamente, filosoficamente, juridicamente. Ele reconhece que direitos pós-coloniais não extinguem direitos anteriores”, ressalta.
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