Elder Dias
Logo após a professora e arquiteta Maria Ester de Souza aceitar o convite para a entrevista da semana do Jornal Opção, o próximo passo da reportagem, obviamente, era combinar o lugar do encontro. “Avenida Goiás, canteiro central entre a [Rua] 2 e a [Rua] 3”, respondeu, de forma bem assertiva e direta.
Faz todo o sentido. Assessora de Relações Institucionais do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás (CAU-GO), entidade da qual já foi vice-presidente, Maria Ester é uma das vozes mais ativas de sua categoria e mostra seu engajamento com a luta pela cidade mesmo nesses detalhes que, mais do que importantes, lhe são preciosos. Foi literalmente na rua que ela defendeu sua tese de doutorado em Geografia Urbana, em 2019: a banca avaliadora e os convidados ocuparam o espaço da Rua do Lazer, no Centro, para o ato oficial do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA) da Universidade Federal de Goiás (UFG).
A relação de paixão com a cidade em que nasceu faz com que, apesar das críticas pelo momento difícil que Goiânia vive – principalmente em relação a serviços públicos simples, como coleta e limpeza –, ela se mantenha otimista. “Em comparação ao restante do Brasil, esta cidade é a mais tranquila e adequada para receber um projeto de urbanização completo, sem onerar totalmente os cofres públicos e sem que isso seja uma obra que tome longo prazo”, garante a arquiteta e urbanista, que também é docente da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).
A transformação que empobreceu a Avenida Goiás faz parte da cultura de gestão urbana
Por que a sra. fez questão de que esta entrevista fosse realizada aqui, na Avenida Goiás?
Porque a cidade é meu tema de estudo, meu objeto de trabalho e pesquisa. A Avenida Goiás representa o objeto desta cidade, é seu cartão postal. Se alguém fala sobre Goiânia fora daqui, a Avenida Goiás é um elemento que está no imaginário das pessoas.
O espaço da cidade é sempre uma zona de conflito, dissensões e contradições. Este espaço da Avenida Goiás foi mexido e remexido desde a fundação de Goiânia. Como a sra. vê este símbolo do urbanismo da capital, diante do que ele já foi e do que poderia ser?
Isso quase que responde, também, à escolha do local [para a entrevista]. Quando uma pessoa lhe pergunta “onde você nasceu?”, você responde “em tal lugar”, obviamente. Em seguida, é natural que a pessoa tenha a seguinte curiosidade: “O que tem lá de legal para conhecer?”. Nesse momento, você vai se remeter a um lugar com o qual tenha alguma afinidade, com que se identifique. A Goiás, em minha percepção, representa a cidade em que eu nasci, seja por ter muita árvore, seja por sempre ter sido um lugar de passagem para ir a todos os lugares.
Quando a avenida foi desenhada, tinha um desenho clássico do que seria a cidade moderna, do ponto de vista do desenho urbano. O que aconteceu com Goiânia nos últimos anos – que, eu acho, é uma transformação que empobreceu a Avenida Goiás – faz parte de nossa cultura de gestão urbana.
Nos últimos 20 anos, tivemos uma única linha de pensamento à frente da Prefeitura de Goiânia que é tratar o espaço coletivo de forma simplória. Assim que a Avenida Goiás é tratada e foi tratada nestes últimos tempos, de uma forma tão simplória que todo o caráter urbanístico e de projeto moderno que foi impresso aqui não é considerado. Então, ela pode ser remodelada, redesenhada, tratada como uma via de ligação qualquer no Centro da cidade, sem o peso de um bulevar, da cidade-jardim que era no projeto original e que é, ainda hoje, uma coisa rara em cidades no mundo. Tem várias cidades que foram planejadas mundo afora, mas são poucas em relação às que existem. No Brasil, temos mais de 5,7 mil cidades. Quantas delas da era moderna foram desenhadas para ser capital de um Estado brasileiro? Talvez menos de meia dúzia, me lembro aqui de Belo Horizonte, Goiânia, Brasília e Palmas.
A questão é: como o gestor olha para a Avenida Goiás? Eu poderia arriscar que da seguinte forma: “Bom, a Avenida Goiás é no Centro da cidade, uma avenida bonita e arborizada”. E, então, trata a via com essa leitura simplória do que é este espaço, na verdade extremamente sofisticado do ponto de vista do urbanismo. Então, aí fica fácil dizer “vamos desmanchar isso aqui, vamos tirar isso ali, vamos fazer um ônibus passando por cima” etc.
É como se um milionário comprasse um grande palácio e nele começasse a fazer puxadinhos…
Isso, como se ele falasse “não gostei desse arco na entrada, essa fonte aqui do lado, vamos derrubar”. Então, olham para a escultura do Bandeirante [no cruzamento das avenidas Goiás e a Anhanguera] e simplesmente falam “vamos mudar isso aqui, vamos fazer diferente”. É assim que a gestão pública tratou, nos últimos anos, este centro histórico aqui – que a gente chama de “núcleo pioneiro” – que inclui a Avenida Goiás.
Observando ao redor aqui, não tem como reparar as fachadas e não lembrar recordar do eterno projeto Cara Limpa [de revitalização visual do Centro], que está na boca de todo prefeito que é eleito, mas a coisa nunca se efetiva. Essa forma de lidar com essa política pública de revitalização também se inclui nesse perfil simplório do olhar dos gestores?
Fico pensando que eles acham que isso não daria a repercussão que gostariam. Por exemplo: como explicar à administração que uma placa com 3 metros na frente de um comércio é menos chamativa para o comércio do que uma placa de 50 centímetros? As pessoas da gestão vão dizer “imagina, de jeito nenhum, o comerciante quer é isso”, nunca vão olhar para a técnica que foi planejada – no projeto impresso, ainda da década de 80 –, que trazia para a frente a arquitetura escondida e que explicava que os proprietários dos estabelecimentos tinham outras formas de divulgar. Hoje ainda mais, com internet e rede social. O que não poderia é com uma placa que tapasse a fachada. Então, não executam o projeto por conseguem um consenso. O prefeito e o secretário que têm isso na mão não dão conta de articular essa informação com os comerciantes e não conseguem explicar como eles podem sair ganhando. Porque quem tem de mexer na fachada é o dono do edifício, não a Prefeitura. Como convencer o sujeito de que ele não vai perder o inquilino se ele resolver diminuir o tamanho do painel de publicidade? Essa articulação, esse poder de convencimento, não existe porque, além de dar trabalho, eles também não sabem e não querem trazer outra pessoa para essa tarefa. Na relação política, o gestor, ao conversar com o comerciante, na verdade quer é uma troca. No primeiro “não” que recebe do empresário, esse gestor já recua, por medo de perder o apoio político e eleitoral, de não ter o voto. E, como consequência, vemos o Centro abandonado, sem que nenhum projeto de revitalização consiga emplacar.
Não é exclusividade de Goiânia: o empresariado brasileiro é imediatista e conservador, no sentido de que, se está lucrando de uma tal maneira, não querer testar uma nova forma de empreender. Isso a gente percebe também em outras questões, como na resistência à mudança do nome de logradouros, como temos tido recentemente na capital, com a polêmica da alteração de Avenida Castelo Branco para Agrovia Iris Rezende Machado. Como a sra. analisa esse tipo de situação?
É uma perda de energia e de tempo inimaginável. Totalmente desnecessário existir, no século 21, um projeto de lei ser elaborado para mudar o nome de uma rua e homenagear um político. As homenagens devem ser feitas, são muito importantes, porque são nelas que a história fica registrada. Quando ela fica marcada como um objeto físico na cidade, a população que ainda vai nascer terá aquilo ali para perguntar quem foi tal pessoa.
Veja, então, a pobreza de repertório que temos hoje na Câmara de Goiânia. Por que, em vez disso, não construir um museu com o nome do político, ou uma praça com um centro cultural, uma estátua, um elemento representativo do que foi ele para a política goiana. Isso é muito mais significativo. Mudar a nomenclatura de uma via… para quem serve o nome de uma rua? Para o carteiro, para quem for registrar um CNPJ naquele logradouro e para as pessoas se localizarem. A homenagem a um político poderia ser muito mais inteligente e rica para a cidade, principalmente na estrutura, no contexto urbano, do que mudar nome de via.
Hoje, em Goiânia, um arquiteto não consegue emitir uso do solo para iniciar um projeto
Goiânia tem suas fases. Já passou por vários momentos críticos, seja em termos de limpeza, de transporte público, de pavimentação. Hoje, como a sra. enxerga este momento da cidade? Qual é a atual “fase crítica”?
É algo complicado. No início desta gestão atual, o prefeito começou a fazer mudanças na Comurg [Companhia de Urbanização de Goiânia] e, pelo CAU-GO, tive algumas reuniões com o pessoal de lá para discutir planos para estruturação de áreas como a do saneamento. E, naquele momento, pensei que esta administração municipal tinha a oportunidade de despolitizar espaços como a Comurg. A empresa sempre uma espécie de coração político dos gestores: se comandasse lugares como a Comurg e o antigo Dermu/Compav [Companhia Municipal de Pavimentação], também comandaria a cena política local, por conta do número de seus funcionários e do tipo de serviço prestado, que é o que aparece. A marca registrada do prefeito Iris era essa, a de urbanizar. Só que, para ele, urbanizar era fazer asfalto. Foi o que Maguito Vilela [ex-prefeito de Aparecida de Goiânia, entre 2009 e 2016, e prefeito eleito de Goiânia em 2020, mas que morreu de Covid-19 em janeiro de 2021, sem assumir] fez em Aparecida e transformou a cidade. Lá, ele teve um pequeno entrevero gerando atraso, porque o Ministério Público não permitiu que houvesse pavimentação sem antes a instalação da estrutura de drenagem urbana – enquanto que, aqui, Iris fez asfalto sem isso durante muito tempo.
Hoje em Goiânia, em minha área de atuação, que é o planejamento urbano, vejo que isso acabou. Hoje, um arquiteto não consegue emitir [uma autorização de] uso do solo para iniciar um projeto e não tem perspectiva de ter seu projeto aprovado pela Prefeitura para iniciar a obra. Vemos a cidade com obras invadindo o afastamento, com obras surgindo em todos os cantos, sem a possibilidade de moralmente o poder público vir e falar que não pode fazer aquilo. Isso porque o proprietário da obra vai responder na hora “a Prefeitura não funciona”.
Nesse sentido, vejo que a gente perdeu a oportunidade, com esse prefeito, de trazer um pouquinho de modernização na visão do que seria urbanização. Lembro-me de que, nos primeiros meses da gestão, havia muita conversa em torno da “cidade inteligente”, com programas para isso e para aquilo. É que “cidade inteligente”, na cabeça de certas pessoas, é colocar monitoramento em todo lugar.
Novamente, vem aí uma visão simplória…
Sim, simplesmente colocar câmera não torna uma cidade “inteligente”. Mas nem isso aconteceu. Falaram que iriam aplicar bilhões em infraestrutura. Cadê isso? Portanto, a gente não sai disso, dessa tentativa de executar, e acaba não executando nada. O BRT [Norte-Sul], que é justamente essa obra que passa bem aqui a nossa frente, é um calo na gestão administrativa. Já está na quarta gestão municipal com esse contrato, que virou um monstrengo cheio de aditivos, com dez ou até mais terceirizados – um para o piso, um para o cabo, um para o fio, um para montar, outro para desmontar. E não conseguem concatenar a coisa.
Goiânia se tornou uma cidade que, na minha cabeça, tem uma gestão política. Quem é o corpo técnico da agência de trânsito [a Secretaria Municipal de Mobilidade (SMM)]? O que aconteceu com essa agência? Porque não se aproveitou o momento de saída de todo mundo do MDB de dentro da Prefeitura, um grupo que já era histórico ali? Esse pessoal saiu e veio quem? A gestão do trânsito da capital é uma gestão de uma cabeça só, não conversa com a CMTC [Companhia Metropolitana de Transporte Coletivo], não conversa com o Planejamento [Secretaria Municipal de Planejamento Urbano e Habitação (Seplanh). Simplesmente resolve que vai mudar certo traçado, vai lá e altera como quer.
Como ocorreu recentemente no Jardim América?
Sim, daquela forma: resolve que vai abrir uma praça e então faz, inclusive onde a Arca tinha feito recentemente um plantio de espécies nativas de Cerrado. O plantio foi para o espaço. Por que isso? Porque o carro não pode esperar um pouco mais no horário de pico? Claro que pode esperar, o sujeito está no conforto de seu veículo, com ar-condicionado, então ele que espere. Essa que deveria ser a regra do trânsito em uma cidade como Goiânia, que não tem investimento no transporte coletivo. Se você tem carro, você que lute.
Todos sabem que é preciso ter mais ônibus, mais linhas de transporte coletivo, mais corredores, mais ciclovias e que a cidade precisa ser mais arborizada. Apesar de isso ser praticamente um discurso de consenso, isso não acontece. Pelo contrário, muitas vezes se faz o contrário. O que é isso? É “apenas” falta de vontade política?
Não. Isso é uma interferência pesada do capital imobiliário na condução do planejamento. E veja bem: isso não é uma coisa desta gestão, nem só de Goiânia. É uma coisa de cidade brasileira e, provavelmente, de grande parte das cidades do mundo. Existe um grupo que detém o poder econômico. Aqui mesmo, na Avenida Goiás, temos ali um banco, lá à frente mais uma agência e daquele lado mais unidades bancárias. Isso é poder econômico, dinheiro. Quem tem dinheiro e que faz dinheiro com cidades? É a construção civil. Quem é o parceiro da construção civil? É o banco que financia as obras. Esses grupos comandam o caminho do desenvolvimento das cidades.
Por que as cidades crescem para um lado e não para o outro? Dizem que é por conta de, digamos, uma BR, que vira um obstáculo. É uma meia verdade. Veja o que ocorreu com a GO-020, a leste da BR-153: não seria natural que uma BR com o peso e o porte daquela, que escoa a produção do Norte ao Sul do País, fizesse a cidade “parar” ali e crescer toda para o oeste? O que vemos, no entanto, é um movimento intenso de urbanização naquela região. Por quê? Porque ali, aqueles condomínios fechados todos, foi uma ideia não das gestões do município, mas de quem era o proprietário daquela área associado com o mercado da construção civil.
Por que a cidade não tem a arborização que precisa, por que não tem os vazios urbanos ocupados adequadamente? Porque quem conduz a política pública urbana não é a gestão. A gestão aceita essa ordem e faz trocas. Então, os gestores negociam o que podem: se o setor imobiliário quer adensar o Setor Marista ao máximo, o que vai dar em troca? E dão, por exemplo, algumas áreas no Parque Lozandes.
De repente, então, o mercado resolve que é hora de adensar a região norte da cidade, por exemplo, a Avenida Pedro Paulo de Souza, no Setor Goiânia 2, com possibilidade de construir prédios de 50 andares. O que vão dar em troca? A gente não sabe, nunca vai saber, mas essa troca está explícita na forma com que enxergamos a paisagem da cidade. É só olhar.
Plano Diretor autoriza a ocupação de áreas vulneráveis ambientalmente, como na região norte
O que foi feito, então, no último Plano Diretor, aprovado no ano passado, foi uma reserva de mercado, em torno desses eixos, como a citada Avenida Pedro Paulo de Souza, para trocas futuras?
Inclusive. O Plano Diretor dispensa qualquer novo loteamento de reservar áreas públicas. Está escrito lá, com todas as letras. O Plano Diretor autoriza a ocupação de áreas vulneráveis ambientalmente, terrenos alagáveis, como na região norte. Foi uma ideia do Iris? Foi uma ideia do Rogério Cruz? Não, a gente sabe de quem foram essas ideias. Portanto, a cidade é assim, do jeito que a gente está vivendo, com a precariedade e com o que ela tem de melhor, porque quem conduz isso é o poder econômico.
Uma reserva para trocas futuras é uma garantia de que tal investimento poderá ser feito, não que necessariamente será feito. O CAU-GO ou alguma outra entidade tem uma previsão sobre a ocupação desses espaços hoje preservados? Quando querem “mexer” na região norte de Goiânia, por exemplo?
Isso é imediato. Se você passar pela Pedro Paulo de Souza, agora, vai ver um estande de venda de lotes montado. Então, isso já está em curso. A Prefeitura não aprova projetos nem emite uso do solo desde setembro do ano passado. Ninguém do mercado imobiliário ou da construção civil foi lá reclamar. Por quê? Porque isso já estava reservado. Já havia uma organização anterior que levou à aprovação desses projetos.
Na verdade, essa indução de reserva para ocupação já não era necessária por esse Plano. Diante de uma interferência de poder [econômico] desse tamanho, não é preciso ter Plano. Veja o que aconteceu no caso do [shopping] Passeio das Águas: foi uma alteração no Plano Diretor que autorizou a construção do shopping como ele foi construído. Então, se não houve uma “reserva” nesse Plano agora, de 2022, o que garante que não venha um grupo desses, no futuro, para pressionar e conseguir uma alteração no Plano Diretor, para garantir determinado espaço de construção? Portanto, mais do que qualquer coisa, diante de uma interferência desse porte, é jogada no lixo qualquer ideia de plano diretor, de participação, de construção etc.
O Plano Diretor de Goiânia, então, em outras palavras simplesmente, serve para legalizar o imoral?
Exatamente, o imoral. O Plano Diretor acaba por legalizar a ocupação daquilo que quem estuda a cidade, o meio ambiente, o planejamento, todas essas pessoas, entendem que pode ser um grande prejuízo no futuro.
Ou seja, o que era algo para dar diretrizes positivas é trabalhado exatamente pelo oposto. É como usar um Ministério do Meio Ambiente para licenciar tudo aquilo que interessa a certos grupos e que até então era impedido pela própria pasta, pelos riscos envolvidos…
Sim, porque o Plano Diretor é nosso instrumento, o lugar de se fazer o planejamento. Mas a interferência que acontece – não só em Goiânia, repito, mas em todo o Brasil – é muito grande e nós, que defendemos uma outra visão de cidade, precisamos admitir que estamos perdendo essa guerra. E quem somos nós? No caso de Goiânia somos a Arca, o CAU-GO, as universidades, os movimentos sociais, as associações de moradores, como a do Setor Sul. Nós perdemos no debate e eles ganharam. Mas perdemos porque as armas são desiguais: em nosso caso, são as palavras; as deles, são outras coisas, que não sei dizer, mas coisas que convencem aqueles que têm mandato na Câmara a votarem com eles.
Diante do cenário de mudanças climáticas, do que já acontece e que pode acontecer em termos de eventos extremos, Goiânia deveria ter um Plano Diretor muito mais radical, digamos assim, para combater esses eventos?
Haveria duas opções: um plano de adequação às mudanças climáticas poderia ser algo que alterasse o Plano Diretor ou, também, um plano setorial emergencial. Daqui a pouco mais de nove meses, vai ser janeiro de novo. Essas mesmas chuvas, pioradas, podem causar mortes de novo [em 30 de janeiro, o motociclista Warley Melo Adorno, de 22 anos, morreu após ser levado pela enxurrada de um temporal para dentro do Córrego Cascavel, no Jardim América]. Então, temos nove meses para tomar providências. Ou a gente faz um plano emergencial e detecta quais são os pontos de maior risco para a população e quais são os pontos de mais prejuízo para a urbanização, dando uma solução de obra para isso, ou vamos ficar novamente assistindo as tragédias acontecerem.
A Prefeitura lançou este mês o Plano Diretor de Drenagem Urbana. Até que ponto isso vai para frente?
Eu sou otimista, acho que vai para frente, até por causa da parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG). É uma oportunidade de fazer um trabalho muito bom, com um plano de drenagem com uma abrangência de cobertura para cerca de dez anos com os dados que a UFG tem nas mãos, como os índices pluviométricos, variações, oscilações e vai colocar as propostas de solução.
O que não tem como lamentar é que estejamos entrando no último terço desta gestão – estamos no terceiro mês do terceiro ano – e o próximo ano é eleitoral. Meu temor é que, por conta disso, em vez de ocorrer de fato a execução de um planejamento, é que saiam pela cidade fazendo maquiagens. Isso [o plano de drenagem urbana] não é algo que se faça em um mês, precisa ter dados, levantamentos, estudo. Supomos que o plano seja feito em tempo recorde, como uns seis ou sete meses. Uma vez que esteja entregue em novembro ou dezembro, não terá como executar a obra, porque estaremos na estação chuvosa.
Então, vem daí meu desânimo: não tivemos, no dia 1 da gestão atual, a decisão de fazer um plano de drenagem. Ou ao menos a decisão de pensar, dentro do Plano Diretor atual – que foi aprovado um ano depois de Rogério Cruz tomar posse –, em alguma proposta que mitigasse o problema de drenagem urbana na cidade. Fosse assim, isso já poderia estar sendo executado.
Iris era um político na essência. Então, sabia que precisava cuidar da Comurg
Tivemos todo o contexto da fatalidade com Maguito Vilela. Até que ponto dá para ter certa condescendência com o prefeito Rogério Cruz em razão das condições em que ele assumiu o cargo?
Zero. Ele tinha de estar preparado, porque, supondo que eu ganhasse de bandeja um cargo que fugisse ao alcance dos meus conhecimentos. Vamos dizer que fosse o de ministra da Economia. Sem nenhuma especialização, eu poderia me cercar de gente da área e assumir o cargo. Porque o cargo de ministro é político, não é técnico. Assim também ocorre com o cargo do prefeito e dos secretários – são funções políticas, não técnicas. O que cabe aos que têm esses cargos é a obrigação de contratar quem faça trabalho técnico e resolva o problema.
Iris era um político na essência. Então, sabia que precisava cuidar da Comurg. Ele comandou a Comurg, tinha um apreço pela limpeza da cidade, pela iluminação, eram estruturas da urbanização que ele dominava. Hoje falta cuidado, falta esse apreço por todos os espaços.
A cidade teve prefeitos que deixaram suas marcas: a lembrança de Nion Albernaz [prefeito de 1983 a 1986, depois de 1989 a 1992 e de 1997 a 2000] são os canteiros e praças com flores e limpeza; Iris Rezende [prefeito de 1966 a 1969, de 2005 a 2010 e de 2017 a 2020], com a marca dos novos bairros e da pavimentação; Darci Accorsi [prefeito de 1993 a 1996], com o orçamento participativo; e Pedro Wilson [de 2001 a 2004], com a atenção à estrutura e ao urbanismo…
Em tempo, é preciso registrar que foi Pedro Wilson quem fez a revitalização que embelezou a Avenida Goiás, retirando as barracas e criando o Mercado Aberto na Avenida Paranaíba.
Observando como está hoje esta avenida aqui, ela é algo muito diferente do que era quando foi reinaugurada no início dos anos 2000, na gestão de Pedro Wilson, até mesmo por conta das obras do BRT. O que temos agora é algo que pode ser mudado novamente para melhor no futuro, até por conta da dinâmica da cidade. A questão é: há perspectiva disso? A sra. acabou de dizer que é uma mulher otimista e ano que vem haverá eleições. Vê, no atual prefeito ou nos nomes que aparecem como postulantes a assumir a Prefeitura de Goiânia, alguma perspectiva de melhora?
O “modus operandi” de captação de voto continua o mesmo que sempre foi. Não vejo perspectiva de sair do modelo “Bíblia e música caipira”, porque é isso que sustenta as bases eleitorais de nossos atores políticos. Somente quando houver um degrau um pouco acima – um candidato ou uma candidata que entenda que urbanização é obra, que saúde é prevenção e que educação é ensino fundamental. A partir daí, talvez tenhamos chance de mudar esse cenário.
O que temos como perspectiva, hoje, são políticos formados no mesmo cenário, com a mesma visão da troca, que discutimos há pouco. Ou seja, ele se elege para dar algo em troca para quem o apoia, inclusive financeiramente. Qual político já escreveu ou já propôs que a pasta da Saúde e a de Saneamento poderiam ser, na prática, a mesma? Porque saneamento é saúde e urbanização é saneamento. Então, saúde é urbanização. Mas o que ocorre é cada um fazer seu trabalho sem conversar com os demais e assim seguirá.
Se fosse Maguito?
Não seria diferente nesse ponto. O que talvez ocorresse é que ele não teria desmontado a Comurg, como ocorreu.
A sra. trabalhou com Maguito na gestão de Aparecida de Goiânia. Indo mais fundo nessa espécie de “futurologia do passado”, como seria a capital hoje com Maguito à frente?
Creio que teríamos o seguimento da urbanização, do asfaltamento e do recapeamento das vias. Talvez tivéssemos mais atenção a essa questão da limpeza e da iluminação sem os problemas que estamos tendo hoje. Ou seja, Goiânia teria uma cara de que estaria indo tudo bem. Hoje, falamos que está indo “tudo mal” porque a cidade está suja, feia. Essa parte básica Iris sabia fazer.
Maguito também soube fazer. Ele transformou Aparecida. Eu era uma técnica contratada para trabalhar dentro de uma secretaria [de Planejamento], mas tinha autonomia. Ele, como prefeito, apenas ligava e falava “vem aqui que eu quero que você faça o projeto do parque” – não sei se há algo assim por aqui. A partir da ideia, eu tinha liberdade para chamar engenheiros, geólogos, assistentes sociais, agrônomos para trabalhar comigo.
Enfim, como prefeito de Aparecida, Maguito trabalhou por uma cidade limpa e conectou o sistema viário. A cidade ganhou uma cara, um conforto. A pessoa diz para si mesma, “Está limpa, está iluminada? Então eu posso ir”. Se não está, a pessoa não vai, vira cidade-fantasma.
Em Goiânia, Maguito talvez sofresse uma pressão muito forte para esse discurso de “cidade inteligente” e de privatizar espaços da cidade. Talvez estivéssemos assistindo mais vendas de espaços públicos e parcerias do tipo “adote um parque” com a iniciativa privada. Rogério Cruz está longe disso, talvez porque tenha perdido tempo na construção dessa teia política.
Como arquiteta e urbanista, na discussão das cidades com seus colegas, como está Goiânia em relação às outras cidades? Estamos ficando para trás?
Na relação de Goiânia com ela mesma, sim. Veja a cena cultural da cidade: acabou. Houve a questão da pandemia, mas já estamos em 2023. Durante o isolamento, houve apresentações virtuais espetaculares, eu assistia a todos, da Orquestra Sinfônica Municipal, o Coral também fez uma linda apresentação pela internet. Mas saímos para o modo presencial há um ano e nada dessa cena voltou.
Já estamos caminhando rumo à metade deste ano e não vemos um projeto para esta cidade, do ponto de vista da preservação das áreas verdes, do ponto de vista de melhorar a caminhabilidade. Então, com relação a si própria, Goiânia regrediu. Porém, em comparação ao restante do Brasil, esta cidade é a mais tranquila e adequada para receber um projeto de urbanização completo, sem onerar totalmente os cofres públicos e sem que isso seja uma obra que tome longo prazo. A capital está em um plano inclinado, não tem serra, não há barreiras naturais. Aqui não é Belo Horizonte, onde tem rua que é um desespero para subir. Goiânia, não, é um planalto, é 90% plana, com as águas todas correndo para o [Rio] Meia Ponte.
Então, tem um jeito tranquilo de organizar tudo isso, fazer a devida urbanização e deixar todo mundo em condições de trabalhar, viver e caminhar em segurança. Em comparação a outras cidades do Brasil, estamos com sorte. Veja a situação atual de Belo Horizonte, ou a de Recife, que teve desmoronamento de encosta. Lá no litoral paulista, a quantidade de vidas perdidas.
A pior sensação do mundo é precisar do ônibus para se deslocar em Goiânia
Ou seja, até para as mudanças climáticas Goiânia tem pontos de vantagem?
Inúmeras vantagens, com certeza.
Basicamente, então, nosso problema é de drenagem?
De drenagem e de temperatura. Morar em uma cidade que chega a 40 graus à sombra não é saudável para quem é motorista, que trabalha na rua. E, vamos combinar, temos um problema grave de mobilidade: a gente não consegue andar em calçada, não consegue andar de bicicleta. Experimentei a bicicleta, caí e nunca mais.
Nos últimos três anos, tomei ônibus duas vezes por semana. Foi uma experiência maravilhosa para deixar claríssimo que a pior sensação do mundo é precisar do ônibus para se deslocar em Goiânia. Os ônibus são velhos, são sujos e demoram demais para passar no circuito que eu faço. Então, tenho a “opção” de chegar no trabalho ou uma hora antes ou uma hora depois. O que é isso? Ainda ando de ônibus, pego na Praça do Avião e desço próximo ao Flamboyant, numa viagem de cerca de 35 minutos, supertranquila. Só que é uma viagem muito desconfortável porque, além de estar imundo, dentro do ônibus faz um calor insuportável. Esse problema de mobilidade segue crônico aqui na cidade.
“Convencer” o cidadão a andar de ônibus – ou voltar a andar –, além da questão da mobilidade, passa pelo valor da tarifa, pelo conforto e também da usabilidade. E não parece ser fácil. No seu caso, que faz como experimento de vivência, fica sendo quase um hobby…
Faço mesmo por excentricidade, como diz minha filha (risos), decido “hoje eu quero” e então vou, porque eu tenho o privilégio de poder chegar ao trabalho quando quiser, eu faço meu horário. Eu não preciso do transporte coletivo, por isso sei que quem precisa de verdade tem uma vida desgraçada. Eu estava de carro esses dias, voltando da faculdade, às 10 horas da noite e vi uma dúzia de mulheres no ponto de ônibus. Fiquei desesperada, porque me coloquei no lugar dessas mulheres.
Tentei também fazer a pé o percurso da PUC [Pontifícia Universidade Católica de Goiás, no Setor Universitário], onde leciono. Consigo voltar, mas, para ir, morro de medo, porque é muito escuro para sair de casa – minha aula começa às 7 da manhã e às 6 ainda tem muito pouca gente na rua, me dá medo. E aí está mais um tema a se pensar: o medo de andar pela cidade